As bem-aventuranças do Sermão da Planície (Lc 6:20-23) são bem mais curtas do que no similar Sermão da Montanha (Mt 5:1-11). Talvez porque, no terceiro evangelho, o discurso de Jesus ão tenha abrangido o tema da justiça que é um dos elementos chaves de interpretação em Mateus. Porém, no texto de Lucas, as quatro beatitudes são a seguir contrastadas com os quatro "ais" correspondentes (vv. 24-26).
É possível que os ensinos de ambos os sermões tenham sido frequentemente utilizados por Jesus em suas pregações móveis e pelos cristãos primitivos. Neste caso, talvez teriam ocorrido algumas variações de acordo com as necessidades específicas de cada comunidade. Por exemplo, supõe-se que o público do Evangelho de Lucas fosse composto por leitores de cultura grega enquanto que os destinatários do Livro de Mateus poderiam ter contatos maiores com o judaísmo praticado nas regiões palestinas, tratando-se, quem sabe, de uma comunidade situada em Israel ou na Síria.
Assim como ocorre no Evangelho de Mateus, o verbo aparece no tempo presente apenas na primeira e na última bem-aventurança enquanto que, nas demais, ocorre uma projeção para o futuro. Ou seja, o Reino de Deus já era dos pobres assim como o "galardão no céu" já pertencia aos homens rejeitados por terem abraçado a causa do Filho do Homem. Contudo, a fartura para o faminto e o riso para os que choram seriam conquistas de amanhã. E os discípulos ouvintes (as comunidades de crentes) já são bem-aventurados, termo este que significa muito mais do que "feliz", como ocorre em algumas traduções do Novo Testamento. A beatitude bíblica, assim, expressa um estado de espírito eterno e está relacionada com a ideia de sermos agraciados, alcançando de Deus o favor da vida.
De acordo com os versos anteriores de Lc 6:17-19, Jesus tinha descido de um monte não identificado e chegado a uma planície onde se encontrou com muitos discípulos e com uma grande multidão. Ali o Mestre atendeu os necessitados ministrando-lhes cura. E, no meio de toda aquela gente sedenta, predominantemente de condição humilde, é ensinado aos seus seguidores que bem-aventurados são os pobres.
Se estivéssemos estudando Mateus seria mais fácil compreender que pobreza é usada no discurso como metáfora de uma "humildade espiritual" digamos deste jeito. Porém, no contexto de Lucas, se lembrarmos do Magnificat, que é o cântico de Maria (1:46-55), notaremos uma preocupação incontestável com o social:
"Agiu com o seu braço valorosamente;
dispersou os que, no coração,
alimentavam pensamentos soberbos.
Derribou do seu trono os poderosos
e exaltou os humildes.
Encheu de bens os famintos
e despediu vazios os ricos."
(Lc 1:51-53; ARA)
Há uma inversão dos valores no discurso feito por Jesus. Aos pobres, não aos ricos, pertence o Reino. Os que não dispõem de recursos, por dependerem da Divina Providência, podem se tornar mais sensíveis à dimensão espiritual. Já o dinheiro trás um falso consolo (v. 24) de maneira que o sujeito abastado anestesia-se com maior facilidade diante da angústia causada ao coração decorrente de uma vida sem Deus. Possuir muitos bens, conta bancária alta, falsos amigos nos rodeando, elevado status social, prazeres e poder costumam propiciar a alienação e, consequentemente, perdição quanto ao que somos e da razão existencial. Não raramente, pessoas com boas condições financeiras e apegadas à matéria se desestabilizam quando removidas de suas zonas de conforto nas quais se acomodaram.
Contudo, as bem-aventuranças não se prestam para conformar o pobre com a sua situação injusta. Elas apontam para um futuro de mudanças a ser realizado. Os que passam por necessidades e sofrimento devem crer num amanhã diferente e lutarem pela concretização desse ideal revolucionário. Os famintos um dia serão fartos assim como os que agora choram haverão de rir (v. 21), ao passo que o inverso sucederá aos que hoje estariam por cima (v. 25).
Cada vez mais reconheço a importância da fé para o homem superar seus obstáculos, engajar-se nas lutas sociais e transformar a história. O cenário atual pode apresentar-se desfavorável, mas não permanecerá assim para todo o sempre. Por isso, o discípulo de Cristo não desiste de continuar lutando para as mudanças acontecerem quer ele as veja ou não se concretizando nos seus dias e, assim, possui, desde agora, o Reino eterno. Nada pode desanimá-lo!
Diante da luta permanente por um mundo melhor, está a maneira como iremos nos posicionar. Temos a escolha de sermos agradáveis aos homens e bem aceitos por eles ou contrariarmos os seus interesses a ponto de perdermos as amizades daqueles que, conscientemente ou não, querem manter as cosias como estão. E, quanto a isto, Jesus compara a atitude dos discípulos com a dos profetas bíblicos que os antecederam. Eles foram rejeitados pelas verdades que proclamavam enquanto os falsos profetas recebiam elogios dos poderosos iníquos que oprimiam o povo das piores maneiras.
Na história eclesiástica, não tem sido diferente. Os que abraçaram a causa do Filho do Homem (as lutas populares) jamais foram tratados com estima por esse sistema podre que promove desigualdades. Mas, nessas horas, importa lembrar que, nos céus, o nosso nome tem sido agradável a Deus, caso estejamos verdadeiramente comprometidos com a sua vontade. É do Senhor, não dos homens, que importa receber o louvor.
Agindo com essa ousadia, ao invés de se curvar ao sistema social dominante, o discípulo torna-se um bem-aventurado. Ele encontra o real sentido da vida e experimenta uma alegria eterna em seu interior que coisa nenhuma desta terra pode substituir. A causa do Filho do Homem passa a estar presente em tudo o quanto fizer.
Desejo poder curtir mais essa bem-aventurança. Confesso tê-la parcialmente experimentado nas ocasiões e que pude desfazer-me das coisas que me proporcionavam falsas seguranças e apego errado. A satisfação de compartilharmos o que temos, possibilitando ao outro fazer parte da nossa felicidade, produz uma sensação de completude e nos liberta das ilusões deste mundo. Logo, é o caminho mais excelente para caminharmos. A verdadeira riqueza!
OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro O Sermão das Beatitudes, pintado entre 1886 e 1894 pelo artista francês James Tissot (1836-1902). A obra encontra-se atualmente no Museu do Brookyn, Nova York. Extraí a imagem do acervo virtual da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Brooklyn_Museum_-_The_Sermon_of_the_Beatitudes_(La_sermon_des_b%C3%A9atitudes)_-_James_Tissot.jpg
Texto muito bom! Me deu um ânimo novo para prosseguir em buscar fazer a vontade de Deus! Glória a Deus! Que Deus o abençoe
ResponderExcluirFico feliz com o que expressou, amigo! A cada dia precisamos nos reinventar e não desistirmos do lindo projeto de vida que Deus tem para nós. Deus te abençoe também e obrigado por seu comentário que me trás incentivo de continuar com essas ministrações.
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