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sexta-feira, 28 de novembro de 2025

A última Flor do Tempo

 

Palmeira-talipot florescendo no JBRJ


(Conto – Rio de Janeiro, novembro de 2025)


O sol de fim de tarde filtrava-se entre as árvores altas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, tingindo de dourado o chão úmido. O ar carregava o cheiro doce das bromélias e o rumor distante das maritacas. A poucos metros, um grupo de visitantes fotografava, em silêncio reverente, a palmeira-talipot em plena floração — um acontecimento raro, notícia em todos os jornais naquela semana.

Kenjiro Tanaka, 102 anos, caminhava devagar, apoiado no antebraço firme do bisneto. Cada passo era uma memória. O corpo hesitava, mas os olhos — pequenos, fundos — carregavam uma claridade surpreendente.

Ao seu lado, o adolescente Gabriel ajeitava a mochila e perguntava, curioso:

— Biso, é essa aí? A talipot que só floresce uma vez?

Kenjiro assentiu.

Uma vez… e depois morre. Assim como certas histórias, que só acontecem uma vez — e duram para sempre.

A árvore erguia-se como um guarda-sol colossal, folhas imensas abertas como braços. No topo, despontava a enorme inflorescência: milhares de pequenas flores douradas, vibrando com a luz do fim de tarde.

Gabriel deu um assobio baixo.

— Parece coisa de filme.

Kenjiro sorriu com ternura.

— Na minha aldeia, em Kyushu, no Japão, dizíamos que quando a talipot florescia, era porque o tempo queria contar um segredo. Raramente alguém vivia para ver isso mais de uma vez.

Ele fez uma pausa, respirando fundo. Um leve tremor atravessou-lhe a mão.

— Eu tinha sua idade, talvez um pouco mais, quando a guerra começou. Lembro de caminhar com meu pai pelos campos de arroz queimados. O mundo parecia estar acabando… e mesmo assim, no templo antigo, no alto da colina, havia uma talipot crescendo. Muito jovem ainda. Os monges cuidavam dela como se fosse uma promessa.

Gabriel o olhou com respeito — era raro o bisavô falar daquele tempo.

— Foi nessa época que o senhor saiu do Japão, né?

— Sim. — Kenjiro ajeitou o chapéu de palha, gasto.

 — Fui primeiro para os Estados Unidos.

 Trabalhava carregando caixas em um depósito. O inglês vinha devagar, mas o corpo aguentava. Um dia, a empresa decidiu abrir uma filial no Brasil. Me mandaram para cá porque eu dizia “bom dia” com um sorriso. — Ele riu. — Foi o suficiente para acharem que eu me daria bem entre brasileiros.

Gabriel gargalhou.

— E se deu.

— Me dei. — Kenjiro suspirou. — Conheci sua bisavó, Maria Clara… e minha vida floresceu aqui. Como esta palmeira. Só uma vez. Mas grande o bastante para valer tudo.

Eles se aproximaram da árvore. Pessoas fotografavam, mas a dupla parou apenas para observar. O vento leve fazia a copa balançar, espalhando um perfume discreto, quase imperceptível.

— Sabe por que essa palmeira é especial? — perguntou Kenjiro.

— Por causa da floração única?

— Também. Mas, na Ásia, ela simboliza algo mais profundo. Pacientes são aqueles que esperam décadas para alcançar a beleza completa. A talipot nos ensina que a vida não precisa correr. Cada instante prepara o próximo. Cada dor prepara um entendimento. Cada amor prepara outro amor que virá depois.

Gabriel baixou os olhos.

— Às vezes fico ansioso, vovô… com escola, futuro, essas coisas. Parece que tem que dar tudo certo rápido.

Kenjiro pousou a mão trêmula no ombro do menino.

— Nada verdadeiro cresce rápido demais. Nem você. Nem as pessoas que ama. A talipot espera a vida inteira para florescer — e quando floresce, ela ilumina tudo ao redor. O que importa não é a velocidade… é a profundidade.

O silêncio entre os dois foi tranquilo, como uma semente encontrando terra fértil.

— Venha — murmurou o velho. — Vamos ver o pôr do sol. É outro espetáculo que só acontece uma vez por dia, mas nunca se repete igual.

Saíram devagar do Jardim Botânico, chamaram um UBER pelo aplicativo e seguiram para o Arpoador. O céu começava a virar laranja. Na orla, surfistas recolhiam pranchas, turistas se ajeitavam nas pedras, e músicos de rua afinavam guitarras.

Kenjiro respirou fundo.

— Quando eu tinha a sua idade, Gabriel… eu não sabia se viveria para ver muitos pores do sol. Hoje, cada um me parece um presente.

Sentaram-se na pedra grande, onde o horizonte se abre entre o Morro Dois Irmãos e o mar. O sol descia lento, pintando o Atlântico com faixas de ouro.

Gabriel encostou-se no bisavô.

— E o senhor acha que ainda vai ver outro pôr do sol?

O velho sorriu, sereno.

Talvez. Mas não importa. O de hoje… — ele apontou para o horizonte ardente — …já vale por todos. Como a talipot, que floresce uma vez, mas faz valer uma vida inteira.

O sol sumiu aos poucos. O mar brilhou, depois escureceu. O vento trouxe cheiro de sal, vida e despedida.

E os dois ficaram ali, lado a lado — um começando, outro concluindo — assistindo ao espetáculo silencioso do tempo.


📷: Rafael Ribeiro, conforme extraído de https://www.gov.br/jbrj/pt-br/assuntos/noticias/floracao-rara-de-palmeira-no-jardim-botanico-do-rio-de-janeiro

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