Um conto natalino inspirado em “Boas Festas”, de Assis Valente
No Natal de 1933, o Rio de Janeiro parecia viver dois mundos ao mesmo tempo. No Centro e na Zona Sul, as luzes da Avenida Rio Branco, as vitrines da Confeitaria Colombo e o vai-e-vem elegante dos bondes criavam a imagem de uma cidade moderna, festiva e vibrante. Mas nos morros e subúrbios, a noite caía mais cedo, as ruas eram de barro e o Natal era mais esperança do que celebração.
Nesse cenário contrastante viviam Eduardo, um menino de dez anos do Flamengo, e Joaquim, da mesma idade, morador do Morro da Providência.
O Natal da cidade iluminada
Eduardo morava em uma casa confortável, com árvore montada pela governanta, ceia sendo preparada pela mãe e presentes importados embrulhados com esmero. A grande surpresa daquele ano era um carrinho mecânico europeu, orgulho do comércio sofisticado que chegava aos bairros elegantes.
Naquela véspera de Natal, Eduardo passeava com a mãe pela Cinelândia, observando vitrines decoradas e um grande presépio exposto na Colombo. Era o símbolo da época: brilho, consumo, música e alegria.
O Natal da cidade esquecida
No mesmo dia, Joaquim descia o morro para vender amendoins. Fascinado, parou diante do mesmo presépio, mas por outro motivo: aquilo era quase inalcançável, um mundo que ele observava por alguns instantes antes de voltar à dura rotina da família.
Quando Eduardo e Joaquim se cruzaram diante daquela vitrine, pareciam dois meninos de dois países diferentes. Mas eram apenas duas crianças, igualmente curiosas, igualmente tocadas pelo encanto do Natal.
A resposta ficou martelando na mente de Eduardo.
A música que mudou tudo
No rádio da confeitaria, tocava uma nova canção que começava a ganhar o país: “Boas Festas”, de Assis Valente. Apesar do título alegre, era uma música marcada pela melancolia — falava justamente da criança esquecida, daquela que vê o Natal dos outros mas não o próprio.
As palavras da canção se misturavam à frase de Joaquim. Era como se o compositor escrevesse exatamente sobre ele.
O gesto que dá sentido ao Natal
De volta para casa, Eduardo olhou o embrulho do carrinho. Era bonito, reluzente, caro. Mas, naquele momento, parecia excessivo para alguém que já tinha tanto.
Impulsivamente, ele pegou o presente, escapou discretamente e voltou ao morro. Procurou Joaquim até encontrá-lo sentado no degrau de casa, olhando para o céu, como quem espera algo que não chega.
— Joaquim… trouxe uma coisa.
O menino pobre abriu o papel devagar, como se tivesse medo de estragar. Quando viu o carrinho mecânico, seus olhos brilharam com uma intensidade que a luz elétrica do Centro jamais alcançaria.
Naquela noite, no alto do morro, Joaquim brincou até tarde, fazendo o carrinho deslizar pelo chão de barro como se fosse um tesouro. Pela primeira vez, sentiu que Papai Noel não o tinha esquecido. Só tinha mandado alguém diferente para entregar.
O Rio, a música e o sentido
O Rio de 1933 vivia contradições profundas: modernidade e pobreza, brilho e sombra, festa e fome. “Boas Festas” nasceu exatamente desse contraste — e ecoou tão forte porque reconheceu a dor silenciosa por trás da alegria aparente do Natal.
Clique AQUI e ouça a música que inspirou este conto
Nota sobre o autor
Assis Valente (1911–1958) foi um dos compositores mais originais do período de ouro da música brasileira. Baiano, de origem humilde e marcado desde cedo por dificuldades familiares, veio para o Rio de Janeiro ainda jovem, trabalhando como artesão, caricaturista e, mais tarde, como autor de marchinhas e sambas que fariam enorme sucesso nas rádios.
Seu talento era luminoso, mas sua vida pessoal foi profundamente conturbada. Assis Valente viveu entre a pobreza, crises emocionais, solidão afetiva e sucessivas dificuldades financeiras. Esse contraste entre brilho público e sofrimento íntimo aparece de forma clara em grande parte de sua obra — e “Boas Festas”, composta em 1933, é talvez seu exemplo mais simbólico.


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