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sábado, 22 de novembro de 2025

Um novo censor: a violência estatal sob o governo Cláudio Castro


Arquivo Nacional 


Há exatos 57 anos, em 22 de novembro de 1968, o regime militar brasileiro institucionalizou um mecanismo oficial de controle cultural: a Lei 5.536/68, que criou o Conselho Superior de Censura (CSC) para julgar obras teatrais e cinematográficas. Naquele momento sombrio da história, a censura era sobre ideias — agora, sob o governo de Cláudio Castro, parece que vivemos uma outra forma de censura: uma censura de corpos, de territórios, de vidas.


A operação da Penha: “sucesso” ou massacre?

No dia 28 de outubro de 2025, foi desencadeada a chamada Operação Contenção, nos complexos da Penha e do Alemão, mobilizando cerca de 2.500 agentes das polícias militar e civil. O governador Cláudio Castro comemorou o resultado como um “duro golpe na criminalidade” e chamou a operação de “sucesso”, afirmando que “as únicas vítimas” foram os quatro policiais mortos. Mas os números contestam essa narrativa oficial.

A Defensoria Pública e outras fontes apontam para mais de 130 mortes. Relatórios indicam que dezenas de corpos apareceram em uma mata, que foram removidos por moradores e deixados em praça pública para que a comunidade os visse. Houve também denúncias de “muro do BOPE”: policiais posicionados de modo a encurralar suspeitos para uma área de mata, uma estratégia que sugere cerco mais do que prisão.

Para muitos, essa não foi apenas uma operação de segurança — foi uma chacina patrocinada pelo Estado. O discurso triunfalista de Castro de que todos eram “criminosos” e que a ação foi legítima reforça uma lógica brutal: quem vive nas favelas, especialmente nas mais vulneráveis, é suspeito por definição e pode ser “neutralizado” sem responsabilização.


Um padrão de violência

Esse episódio não é um caso isolado na gestão de Castro. Especialistas apontam que, desde que ele assumiu, o número de operações policiais letais aumentou. Além disso, a letalidade dessas ações tende a atingir desproporcionalmente comunidades pobres, negras e periféricas, perpetuando desigualdades históricas.

É difícil não enxergar nessa estratégia uma forma de governo: o uso da força extrema como ferramenta de poder. A ferro e fogo, Castro busca dar uma imagem de “ordem”, mas o preço pago é a vida dos mais vulneráveis. É um modelo que prefere o espetáculo bélico à construção de políticas sociais sustentáveis.


A censura do Estado moderno

Voltando à analogia histórica: o Conselho Superior de Censura, criado em 1968, representava o poder de decidir o que podia ou não ser visto, lido, dito. Era uma máquina burocrática cuidadosamente construída para silenciar intelectuais, artistas e críticos. Hoje, não precisamos do CSC para silenciar — basta declarar guerra a favela, mobilizar helicópteros, trancar ruas, usar blindados.

Esse tipo de “censura” mata. Mata corpos, mata futuros, mata a dignidade de comunidades inteiras. E, como na ditadura, há uma tentativa de negar, justificar, esconder. Cláudio Castro, ao proclamar “sucesso”, repete o artifício autoritário: controlar a narrativa, minimizar perdas e mascarar a violência institucional.


Chamado à reflexão e à ação

Precisamos resistir a esse novo “censor”. A sociedade civil, os movimentos dos direitos humanos, a imprensa e o sistema judicial têm um papel vital:


  1. Exigir investigação independente — que a operação de 28 de outubro seja apurada por mecanismos transparentes, sem o filtro exclusivo do governo estadual.
  2. Responsabilização dos agentes — se houve uso desproporcional de força, se direitos foram violados, que se ofereça reparação e punição.
  3. Políticas de segurança com base comunitária — mais do que tanques e helicópteros, é necessário investir em educação, saúde, emprego nas favelas.
  4. Transformar a narrativa — deixar de ver os moradores como inimigos e reconhecê-los como cidadãos, com direito à proteção, à vida e à voz.


Conclusão

Há 57 anos, criava-se o Conselho Superior de Censura, símbolo da repressão de ideias. Hoje, sob Cláudio Castro, vivemos na maior parte do Rio de Janeiro uma repressão diferente, mas igualmente brutal: a censura estatal das vidas. Se não fizermos algo agora, apagaremos não apenas vozes, mas corpos.

Não basta protestar — é urgente exigir justiça, verdade e responsabilização. E garantir que, desta vez, não sejam apenas as ideias as que paguem o preço, mas sim os vulneráveis que morrem sem resposta. A caneta da censura pode ter mudado, mas o poder permanece mortal.'''


📷:Márcia Foletto


Dia Escuro na Penha


Naquela manhã,
o sol nasceu com medo de acender.
Era um sol de papel,
delicado como aviso de censura,
riscado por nuvens que pareciam grades
erguidas entre o céu e a gente.

O morro acordou
com o sabor metálico da véspera.
Havia um pressentimento grosso,
uma espessura no ar,
como se o vento tivesse lido antes
o final da história.

Assoviavam
os helicópteros —
pássaros de ferro
com bicos pontiagudos
e asas que não fazem sombra,
mas apagão.

E o homem que subia a ladeira
com pão na mão
sentiu o peso de um país inteiro
mirando suas costas.

As casas,
essas cascas de caracol
que carregam segredos nas paredes,
recolheram suas janelas
como quem fecha os olhos
para não testemunhar
o que viria.

No rádio,
a voz oficial dizia coisas leves:
"segurança",
"controle",
"sucesso".
Mas no morro,
palavras caíam no chão endurecidas,
viravam pedras,
dormentes,
minérios de medo.

Ninguém sabia ao certo
onde começava a operação
e onde terminava a vida.
Era tudo um amálgama,
um cimento fresco
onde se imprimiam rastros de botas.

Então começou.

Primeiro o estrondo,
como se um trovão
tivesse sido contratado pelo Estado
para abrir caminho.
Depois os estampidos,
esses relâmpagos horizontais
que não iluminam nada —
apenas queimam.

Das vielas saíram ecos.
Eram ecos de gente,
vozes que não tiveram tempo
de serem palavras,
apenas sopros,
apenas sílabas partidas no meio,
como páginas arrancadas de um relatório.

O morro inteiro ficou vesgo
de tanto procurar saída.
Parecia um bicho grande
ferido na bruma,
respirando com dificuldade,
tentando proteger seus filhotes
nos buracos da noite.

E quando os corpos começaram a tombar,
ninguém caiu sozinho:
caíram quintais,
caíram domingos,
caíram sonhos de parede fina,
caíram as promessas feitas ao pé da escada,
caíram infâncias que guardavam
a última bola de gude no bolso.

Havia sangue —
esse rio que nunca pede licença —
correndo devagar
pelos paralelepípedos do Estado.

E havia também o silêncio,
o grande censor,
sentado no alto do morro,
vestindo farda antiga,
a mesma que em tempos de chumbo
apagava canções inteiras,
só que agora apagava gente.

Choveram horas inteiras.
Choveu medo,
choveu grito sem garganta,
choveu o nome de cada morto
lavrado nas paredes
que ninguém ousou tocar.

À noite,
o escuro se deitou
sobre o corpo do morro
como uma manta pesada demais.
As vielas pareciam
linhas de um livro interditado.
As lajes,
páginas arrancadas
de um poema que tenta sobreviver.

E quando o Estado recolheu suas armas,
fez-se um silêncio tão denso
que parecia concreto fresco
fechando o peito da cidade.

Mas alguma coisa respirava
embaixo dele.

Era a memória —
esse animal teimoso,
catarina indestrutível,
que cava túneis no esquecimento.

Era a vida
que, mesmo golpeada,
insiste em guardar o nome dos seus.

E era também
o sopro daqueles que tombaram,
agora transformados
em sementes invisíveis,
plantadas no chão do morro,
à espera de um país mais justo
que as deixe finalmente germinar.

Enquanto isso,
a Penha —
que conhece todos os séculos da dor —
sussurra, no escuro,
como os poetas clandestinos
que escreviam no avesso da noite:

“Ninguém apaga o que o povo lembra.
Ninguém silencia o que nasce da vida.
Ninguém mata, para sempre,
quem o morro chama de volta.”

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