Conto ambientado na comunidade de Clypeus, subsuperfície de Europa, ano 2997
A campainha soou através das paredes translúcidas do módulo escolar, vibrando levemente os cristais de gelo reforçado que formavam a cúpula da Escola Harmonia. O brilho azulado das lâmpadas biofotônicas simulava um amanhecer que, ali em Europa, não correspondia a nenhum ciclo natural. O dia era o que a comunidade decidia que seria.
A maioria dos estudantes recolheu seus tablets, desligou suas bio-lentes e saiu conversando animadamente pelos corredores. Mas Kai, um garoto de quinze anos, e Líria, da mesma idade, permaneceram sentados. Sobre a mesa, o holograma da IA educativa — AURORA-9 — pairava como um prisma dourado pulsante.
O professor Dorian Keth, nascido em Marte, coletou alguns projetores manuais e virou-se para os dois com um sorriso paciente. Sua pele apresentava o tom levemente acobreado típico dos marcianos adaptados, e os olhos tinham reflexos prateados — resultado de uma modificação genética comum entre os habitantes do planeta vermelho para melhor lidar com radiação.
— Vejo que continuaremos — disse ele, ajustando o manto escuro da docência. — A aula de hoje despertou perguntas demais para caber no período, não?
Líria brincou com o pingente de metal lunar em seu colar.
— Professor, a gente só… quer entender mais. A história humana é tão longa… mas parece sempre incompleta.
Kai completou:
— O senhor parou exatamente quando a timeline chegou ao final do século XXX. O que aconteceu exatamente com a humanidade até agora?
AURORA-9 brilhou, projetando sobre a mesa uma linha do tempo em espiral.
1. O resumo de 13 séculos — Dorian explica
— Muito bem — começou Dorian. — Vamos recapitular o essencial.
Século XXI
— A humanidade enfrentava as primeiras crises ecológicas irreversíveis e teve de iniciar a transição energética global. Houve também avanços em IA e biotecnologia, que mudaram completamente a medicina.
Séculos XXII a XXIII
— A colonização do espaço começou de forma prática. Bases permanentes na Lua, em Marte e nos polos de Mercúrio. Estações flutuantes em Vênus. Ceres se tornou o maior hub de mineração do sistema interno.
AURORA-9 completou:
— Primeiras tentativas de terraformação de Marte fracassaram parcialmente, mas geraram populações humanas adaptadas ao ambiente.
Século XXIV
— Surgiram as primeiras naves interestelares não tripuladas, que enviaram dados por feixes quânticos comprimidos.
Kai arregalou os olhos.
— Tipo as sondas Precursoras?
— Exatamente — confirmou Dorian.
Século XXV a XXVI
— A humanidade estabeleceu colônias estáveis em Europa, Ganímedes e Titã. A vida média nos mundos habitáveis artificialmente passou dos 150 anos. Na Terra, políticas ambientais severas limitaram crescimento econômico, causando tensões com as colônias expansivas.
— E foi aí que começou a fragmentação política — acrescentou AURORA.
Século XXVII
— A invenção dos motores de compressão de espaço tornou possível viagens interestelares de “apenas” algumas décadas. Surgiram os primeiros assentamentos em sistemas próximos, como Alfa Centauri e Tau Ceti.
Século XXVIII
— A unificação cultural diversificou-se. História, calendários e até padrões simbólicos deixaram de ser centrados exclusivamente na Terra. A expectativa de vida chegou a 200 anos em algumas colônias.
Século XXIX
— Expansão moderada pelo setor local de 40 anos-luz. Descobertas científicas revolucionaram a biologia e permitiram os primeiros experimentos sérios com terraformação parcial em exoplanetas.
Dorian respirou fundo.
— E isso nos traz ao ano 2997, meus jovens. Nós, em Europa, somos parte desse grande mosaico.
2. Os alunos começam as perguntas filosóficas
Kai inclinou-se para frente.
— Professor… o senhor acha que nós estamos realmente melhor? Digo… a humanidade se espalhou, mas parece mais dividida do que unida.
Líria tocou a mesa suavemente.
— E se algum grupo quiser dominar outro? Será que nossa espécie aprendeu o suficiente?
AURORA-9 respondeu antes:
— A probabilidade de conflitos interestelares existe, mas diminui com a distância. Economias e recursos tornam-se cada vez mais independentes.
Dorian completou:
— Ainda assim, a história humana sempre oscilou entre cooperação e conflito. A colonização espacial não eliminou isso. Mas aumentou nossa capacidade de sobreviver a desastres locais.
Líria pensou por um momento.
— Então… viver aqui em Europa é mais seguro do que na Terra?
O professor sorriu.
— Depende do que você chama de “seguro”. Aqui, qualquer falha estrutural pode ser fatal. Mas não há megastorms, pandemias naturais ou superfuracões. Cada lugar tem seus riscos.
3. O futuro distante — os adolescentes ousam especular
Kai levantou outra questão:
— Professor… no ano 10.000, onde a humanidade poderia estar?
AURORA-9 projetou um mapa de 200 anos-luz.
— Com base nas tendências, a espécie humana — ou suas derivações pós-humanas — poderá ocupar um volume esférico de até 500 anos-luz. Talvez mais. Comunidades muito diferentes entre si, algumas adaptadas biologicamente à vida em mundos específicos.
Líria franziu o cenho:
— Derivações? Tipo… humanos diferentes?
Dorian respondeu com calma:
— Já existem linhagens adaptadas a Nereida, a Europa, a Marte. Em dez mil anos, a divergência poderá ser maior do que entre Homo sapiens e Homo erectus.
Kai ficou pensativo.
— Isso não é perigoso?
— É inevitável — disse o professor. — E também fascinante.
4. O diálogo final — sobre sentido e destino
O brilho de AURORA ficou mais suave.
— Talvez a questão real não seja “onde estaremos”, mas “por que estaremos”.
Líria sorriu.
— Então a pergunta filosófica final é: qual é o propósito da humanidade quando ela já ocupou tantos mundos?
Kai completou:
— Ou… se nos tornarmos várias humanidades diferentes, haverá ainda algo que nos una?
Dorian, olhando o gelo eterno além da parede translúcida, respondeu:
— A história mostra que a humanidade é menos definida pela biologia e mais pelas perguntas que decide fazer.
Enquanto existirem seres capazes de olhar para o céu — seja da Terra, de Marte, de Europa ou de algum exoplaneta distante — e se perguntar “quem somos, para onde vamos?”, ainda seremos parte da mesma tradição.
AURORA-9 acrescentou, como um sussurro digital:
— O conhecimento é a única gravidade que mantém nossa espécie coesa.
O sinal final apagou as luzes da sala.
Os três — o professor marciano, os dois estudantes de Europa e a IA — permaneceram ali por alguns instantes, compartilhando um silêncio que parecia, ao mesmo tempo, humano e universal.


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