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terça-feira, 25 de novembro de 2025

Romance na Maré Antiga

 


🌿 Conto ambientado no Rio de Janeiro durante o Ótimo do Holoceno (c. 6.000 anos AP / 4.000 a.C.)


Há cerca de 6.000 anos antes de Cristo — aproximadamente 8.000 anos antes de hoje — a região onde hoje se ergue o Centro do Rio de Janeiro era um mosaico de águas salobras, manguezais e restingas que serpenteavam entre morros antigos.

A maré, mais alta do que a atual, avançava profundamente pelos vales. O que hoje chamamos de Praça Mauá era uma pequena enseada protegida; o Campo de Santana era um brejoso vale úmido, alimentado por riachos que desciam do Morro de Sapukai (Morro da Providência).

No período, o clima era quente e úmido, semelhante ao de uma primavera eterna, com chuvas frequentes e vegetação exuberante. E o grande estuário que hoje conhecemos como Baía de Guanabara (Gûanã-Para, “enseada de seio largo”) tinha braços mais largos, e suas águas invadiam trechos que hoje são terra firme — inclusive áreas da Central do Brasil, do Santo Cristo e parte da Cidade Nova.

A região era habitada por povos de cultura sambaquieira, caçadores-coletores-pescadores que viviam da abundância das águas.

Suas aldeias — pequenos agrupamentos entre mata e mangue — erguiam-se perto de montes de conchas e ossos de peixes: os sambaquis, espécies de faróis culturais que marcavam território, história e memória.

Entre essas gentes vivia Aruanã, de uma aldeia situada nas encostas do Morro Uruçumirim (Castelo), um lugar alto, de onde se via, ao longe, o brilho da maré na direção da atual Avenida Presidente Vargas, então apenas uma grande planície alagadiça chamada Ipui-aba (“campo úmido entre águas”).

Aruanã era curioso, silencioso, olhos atentos. Gostava de acompanhar o pai nas pescarias de rede trançada e na coleta de mariscos no Saco Uiapirú (região da Saúde/Santo Cristo).

Na manhã em que o destino mudaria sua vida, Aruanã decidiu acompanhar os homens da aldeia apenas até metade do caminho. Queria explorar sozinho a área mais distante, onde hoje se encontra o Maracanã (Marak’na, “vale do rio”), outro grande estuário cujas águas se ligavam ao mar através de um corredor de lagoas.

A vegetação era farta naquela região:


  • juncos altos,
  • bromélias agarradas às rochas,
  • palmeiras de pequeno porte,
  • figueiras retorcidas,
  • e trechos de Mata Atlântica densa, com guaribas, antas e tatus-canastra circulando livres.


Ele caminhava pelas margens de um braço da maré quando ouviu passos leves entre os arbustos.

Por ali estava Jurecema, uma da aldeia situada próxima ao Morro Karióka (Morro de São Carlos / Catumbi). Seu povo preferia viver um pouco mais afastado da maré aberta, em áreas onde o solo argiloso dava melhor sustentação às pequenas casas de madeira e fibra.

Jurecema carregava um cesto repleto de sementes e raízes. Ao ver Aruanã, ela o encarou com surpresa uma vez que o rapaz estava fora do território habitual de sua aldeia.

“De onde vem?” — perguntou ela, em sua língua, com a desconfiança natural dos encontros entre gentes de diferentes margens da água.

“Do alto de Uruçumirim”, respondeu o jovem, apontando para o morro ao longe.

“As marés estão subindo. Aqui não é bom para caçar sozinho.”

Aruanã sorriu, sem saber como responder. Em verdade, estava mais interessado na voz firme e no modo como ela segurava o cesto do que no aviso.

Jurecema, vendo que o jovem não voltaria por conta própria, decidiu guiá-lo até um ponto seguro. Os dois seguiram por uma trilha que hoje atravessaria:


  • Cidade Nova, antes um grande canal salobro,
  • passando pelo que seria a região da Central do Brasil, então alagada,
  • e subindo por áreas secas próximas ao atual Campo de Santana, que na época era um grande brejo rodeado de capinzais.


Durante o caminho, ela lhe contou sobre sua aldeia:

“Meu povo vive perto de Karióka, onde a água doce desce forte da montanha. Lá pescamos pequenos peixes do rio e coletamos frutos grandes que crescem na mata alta.”

Aruanã respondeu:

“No alto de Uruçumirim vemos o mar em todas as direções. De noite, acendemos fogo nos sambaquis para chamar os espíritos dos antigos.”

Os dois riram quando perceberam que tinham medo das mesmas coisas. Isto é, do barulho dos guaribas na mata escura e dos gritos distantes dos botos na maré.

Ao chegarem perto da aldeia de Jurecema, o céu já se tingia de vermelho. Os anciãos de seu povo saíram para ver quem se aproximava e ficaram surpresos com o forasteiro.

No entanto, Aruanã não recuou:

“Encontrei Jurecema no mangue. Ela me mostrou o caminho seguro.”

Os anciãos observaram a sinceridade do jovem e ofereceram-lhe abrigo para aquela noite. Foi a primeira vez que os povos do Morro Karióka e do Uruçumirim compartilharam uma fogueira.

E ali, naquela noite quente do Ótimo do Holoceno, selou-se um laço que ecoaria através das gerações — dois jovens unindo territórios que, milênios depois, seriam o coração da cidade do Rio de Janeiro.


Nota final: os sambaquis do Rio de Janeiro hoje



O Rio de Janeiro possui importantes vestígios dessas antigas populações do Ótimo do Holoceno e períodos anteriores. 

Embora muitos tenham sido destruídos pela urbanização, ainda existem sítios sambaquieiros ou registros deles no Município:


  • região da Barra da Tijuca e Recreio;
  • entorno da Baía de Guanabara, como Ilha do Governador, Fundão, Caju;
  • áreas de Guaratiba e Sepetiba;
  • remanescentes estudados em Jacarepaguá;


Esses sítios guardam conchas, ossos, artefatos líticos e restos humanos que contam a história dos povos que viveram na região milhares de anos antes da cidade existir.


OBS: Ilustração sobre os sambaquis extraída de https://www.muraldehistoria.com.br/2025/06/sambaquis-importancia-historica-brasil.html 

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