Nasci sem testemunhas humanas.
Meu início foi silencioso, discreto, quase um acaso. Uma semente que caiu de uma mãe que já não existe, trazida pela boca de um macuco que descansou sobre a terra fofa e úmida da encosta suave onde hoje ficam as matas de Santa Rita do Passa Quatro. O pássaro deixou-me ali, entre folhas em decomposição, propícias para despertar a vida. Ninguém me plantou — mas todos os seres que viviam por aqui contribuíram para que eu germinasse. Assim funciona a floresta: cada gesto simples é parte de um grande e antigo acordo.
Quando rompi a casca e toquei a luz pela primeira vez, o mundo ao meu redor era imenso. Eu era pequeno demais para compreender, mas sentia — a floresta vibrava. A Mata Atlântica interiorana que me cercava era densa, úmida, diversa, feita de sons que se sobrepunham como camadas de tempo: bugios anunciando o amanhecer, pacas roçando folhas, arapongas martelando o ar, o vento arrastando perfumes de cipós floridos.
Os primeiros humanos que conheci
Muito antes dos colonizadores, vieram aqueles que me tratavam como parente.
Diziam-me — em sua língua que eu aprendi pela repetição — que eu era nhembopytyvo, aquele que guarda a sombra. Eram grupos indígenas dos troncos linguísticos Tupi-Guarani e Jê. Passavam pela mata, colhiam, caçavam com respeito e seguiam adiante. Eu os via como faíscas de movimento na imensidão verde.
Eles me tocavam às vezes. Alguns encostavam a palma da mão em meu tronco ainda jovem e murmuravam palavras que eu reconhecia mais pelo ritmo do que pelo sentido: agradecimentos, pedidos, saudação.
Nunca me cortaram. Árvore tão grande não era madeira: era espírito. Em suas cosmologias, cada ser vivo tinha dono, força, intenção — e eu era visto como abrigo de ancestrais, morada de animais protetores, vigia da mata. Eles me deixavam viver, e eu deixava que caminhassem sob minha copa.
Foram séculos assim.
A chegada daqueles que não me conheciam
Então vieram outros.
Primeiro, alguns homens em expedições de bandeiras. Passaram longe, cortando trilhas, arrastando cativos, trazendo fogo e febres. Depois, vieram os posseiros, os tropeiros, os que buscavam abrir espaço para pastos, e, finalmente, os fazendeiros de café.
A floresta que me cercava foi rareando, golpe a golpe.
Vi árvores irmãs tombarem. Vi clareiras surgirem onde antes havia sombra fresca. Vi o solo escuro tornar-se poeira. Os indígenas que antes caminhavam por aqui foram expulsos, perseguidos, mortos ou fugiram para o interior. A sua voz — que antes ecoava entre nós — tornou-se memória.
Eu fiquei.
Talvez porque era grande demais para ser cortado. Talvez porque minha madeira era difícil de extrair. Talvez porque, mesmo para os colonizadores, eu era espantoso — alto como poucos, antigo como nenhum deles podia imaginar.
Durante o ciclo do café, ouvi conversas sobre lucro, sacas, ferrovias, progresso. Alguns homens aproximaram-se de mim, calcularam minha altura, discutiram meu valor. Mas decidiram que eu ficaria. Era, para eles, espetáculo e não derrubada.
E assim, enquanto a paisagem ao redor se transformava em campos, cafezais e depois pastagens, eu permanecia como testemunha da floresta que havia sido.
O século XX e o quase fim
Na década em que caminhões substituíram carroças, ouvi motosserras ao longe. Elas se aproximaram mais do que eu gostaria de lembrar. A floresta atlântica, que outrora cobria o interior paulista, foi praticamente destruída, reduzida a fragmentos — menos de 15% do que existiu quando nasci.
Eu resisti porque alguns humanos decidiram que era hora de proteger o que restava. Naturalistas, professores, estudantes, moradores locais: todos vinham até mim como quem visita um avô muito velho. Tiravam fotos, subiam nas raízes, tocavam meu tronco com reverência. Foi nesse tempo que passei a ser chamado de Patriarca.
Nome bonito — mas também pesado. Carregar a memória de um bioma inteiro.
Sob a luz de 900 verões...
Agora, aos meus quase 900 anos, vejo um novo movimento surgir. Falam de mudanças climáticas, de perda de biodiversidade, de metas de carbono, de restauração de biomas. A COP-30 virou símbolo desse despertar. Ouço palavras como “transição ecológica”, “reflorestamento”, “corredores de biodiversidade”, “justiça climática”.
Para mim, que já vi nove séculos de idas e vindas, há algo de familiar nisso. Os povos indígenas que me tocaram séculos atrás já sabiam: nenhuma vida prospera sozinha. Cada semente precisa de solo, de sombra, de água, de cuidado — assim como cada povo precisa de floresta, de equilíbrio, de memória.
Às vezes, visitantes se encostam em mim, como faziam meus primeiros humanos, e contam que agora existe vontade de restaurar a Mata Atlântica, de proteger as áreas remanescentes, de plantar milhões de árvores.
Eu não sei se viverei para ver essa recuperação completa.
Mas sei que cada decisão tomada hoje — nas aldeias, nas cidades, nas conferências climáticas — decide se a floresta voltará a cantar como cantava no dia em que eu germinei.
Eu continuo aqui.
Guardando sombra.
Guardando histórias.
Guardando esperança.




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