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segunda-feira, 20 de abril de 2020

Qualquer ato de ataque à democracia e à Constituição merece o nosso total repúdio, mas precisamos compreender suas causas



"Traidor da Constituição é traidor da pátria. (...) Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina." (trecho do discurso de Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 05 de outubro de 1988)

Na tarde do último domingo (19/04), enquanto todos os brasileiros deveriam permanecer de quarentena nas suas casas por causa do coronavírus, fiquei perplexo ao saber de um ato realizado em frente ao Quartel General do Exército de Brasília. Ali um grupo de manifestantes aglomerou-se pedindo uma intervenção militar no país, algo que contraria frontalmente a nossa Constituição. 

Entretanto, fiquei mais perplexo ainda ao saber do comparecimento do presidente Jair Messias Bolsonaro a esse criminoso e repugnante evento, conforme relatado pelo portal de notícias G1:

"Assim que chegou ao QG Militar, Bolsonaro começou a transmitir ao vivo a participação dele em uma rede social. Nem ele, nem os seguranças usavam máscaras de proteção. Poucos manifestantes estavam de máscaras. O presidente acenou para dezenas de manifestantes que estavam aglomerados - o que vai contra as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do próprio Ministério da Saúde. O presidente andou e continuou acenando para os apoiadores. Diante dele, os manifestantes exibiam mais faixas parecidas pedindo intervenção militar, o que fere a Constituição. Um cordão de isolamento impediu que o público chegasse até o presidente Bolsonaro cumprimentou um policial militar com um aperto de mão e em seguida subiu na caçamba de uma caminhonete branca. Já em cima da caminhonete, ele passou a mão no nariz. Foi possível escutar gritos de defensores do AI5. Mais gritos defendendo o fechamento do Congresso e do STF. E uma faixa que pedia o fechamento do Supremo e do Congresso Nacional. No discurso, Bolsonaro falou em democracia, mas em nenhum momento condenou esses pedidos proibidos pela Constituição e antidemocráticos." (Extraído de https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/04/19/bolsonaro-discursa-a-manifestantes-que-pediam-intervencao-militar.ghtml)

Fato é que a presença do presidente a esse protesto gera um problema institucional grave para o país, colocando o Poder Executivo em rota de colisão com o Legislativo e o Judiciário, bem como provoca as Forças Armadas que têm por objetivo cumprir suas funções constitucionais, servindo ao Estado e não ao governo, abstendo-se de se meter em questões políticas.

Ora, acertadamente, assim se posicionou o presidente da Câmara Federal, o deputado Rodrigo Maia, ao publicar em uma rede social mensagem na qual repudia "todo e qualquer ato que defenda a ditadura, atentando contra a Constituição":

"O mundo inteiro está unido contra o coronavírus. No Brasil, temos de lutar contra o corona e o vírus do autoritarismo. É mais trabalhoso, mas venceremos. Em nome da Câmara dos Deputados, repudio todo e qualquer ato que defenda a ditadura, atentando contra a Constituição. Para vencer esta guerra contra o coronavírus precisamos de ordem, disciplina democrática e solidariedade com o próximo. Defender a ditadura é estimular a desordem. É flertar com o caos. Pois é o estado democrático de direito que dá ao Brasil um ordenamento jurídico capaz de fazer o país e avançar com transparência e justiça social. São, ao todo, 2.462 mortes registradas no Brasil. Pregar uma ruptura democrática diante dessas mortes é uma crueldade imperdoável com as família das vítimas e um desprezo com doentes e desempregados. Não temos tempo a perder com retóricas golpistas. É urgente continuar ajudando os mais pobres, os que estão doentes esperando tratamento em UTIs e trabalhar para manter os empregos. Não há caminho fora da democracia."

Por sua vez, os ministros do Supremo Tribunal Federal também criticaram a manifestação. Luís Roberto Barroso cobrou uma reação ao aumento do tom usado pelo próprio presidente Jair Bolsonaro e por seus apoiadores contra o Congresso Nacional:

"É assustador ver manifestações pela volta do regime militar, após 30 anos de democracia. Defender a Constituição e as instituições democráticas faz parte do meu papel e do meu dever. Pior do que o grito dos maus é o silêncio dos bons (...) Só pode desejar intervenção militar quem perdeu a fé no futuro e sonha com um passado que nunca houve. Ditaduras vêm com violência contra os adversários, censura e intolerância. Pessoas de bem e que amam o Brasil não desejam isso"

Todavia, segundo o líder da oposição na Câmara dos Deputados, André Figueiredo (PDT-CE), a participação de Bolsonaro em protestos neste domingo não pode ser esquecida e avaliada no futuro. Porém, no seu entender, o momento é de concentrar os esforços no combate ao coronavírus, não recomendando aos partidos políticos que reajam provocando um enfrentamento com um segmento da sociedade.

É certo que os movimentos golpistas que pedem uma intervenção militar no país não podem sereignorados. Tão importante quanto preparar uma resposta a esses fatos após à pandemia da COVID-19, tipo responsabilizar Bolsonaro por sua conduta, é procurarmos entender o porquê disso tudo. E, neste sentido, não nego que a corrupção foi o que fez adoecer as instituições democráticas do nosso país. E aí, lembrando do discurso de Ulysses Guimarães no dia em que nossa Carta Política foi promulgada, vale a pena refletirmos sobre o seguinte trecho da sua fala:

"A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do presidente da República ao prefeito, do senador ao vereador. A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam (...) Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. Não é a Constituição perfeita. (...) Mas será útil, pioneira, desbravadora, será a luz ainda que de lamparina na noite dos desgraçados." 

Conclui-se que ainda há uma ferida aberta na nossa nação e que não existe outro caminho senão cumprir a Constituição com observância de todos os seus princípios basilares. Logo, as nossas autoridades (e também os cidadãos) não podem permitir que o seu texto se transforme em letra morta, mas precisam levar adiante esse projeto de nação planejado desde a década de 1980, fazendo as devidas atualizações e ajustes interpretativos, conforme os anseios do nosso tempo.

Ótima semana a todos!

2 comentários:

  1. Olá, Rodrigo!

    Um excelente texto, aliás, você escreve muito bem e de forma transparente e apelativa.

    Vi na TV portuguesa essa ocorrência, que considero fora do nosso tempo. O mundo tem 2 ditaduras, que eu me lembre: China e Coreia do Norte e um dia desses vão terminar.

    Bolsonaro é um homem pouco ou nada inteligente, foi militar durante muitos anos e nada entende dos direitos dos cidadãos. A isso, se junta o facto de ele ser evangélico, segundo sei, e a crendice acompanha suas atitudes.

    A Constituição é para cumprir, embora em nenhum país tudo seja perfeito.

    Espero que estejas bem, tal como Núbia e tomando as medidas exigidas pela Covid-19.

    Grata pelo teu comentário no meu blog. Tão completo e tão bem explicado. Me ensinaste coisas, que eu desconhecia. Mto obrigada!

    Beijos e se cuidem!

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    1. Oi, CEU.

      Obrigado por sua leitura e comentários.

      Por aqui temos nos cuidado, sim. Núbia só saiu de casa nas vezes que precisou de atendimento médico (consulta e uma emergência por sentir dores no estômago). Eu, porém, só tenho saído para fazer as compras de casa. Mas é provável que, em maio, o Brasil já volte às atividades, apesar da doença não ter se estabilizado.

      Sem dúvida, Bolsonaro não tem competência para o cargo que ocupa. Estamos de fato mal representados. Mas não o subestimo pois ele sabe,tal como o Trump, avançar e recuar, fazer algo hoje e mudar a interpretação dos fatos no dia seguinte...

      As ditaduras desejo que sumam do mapa e que possamos aperfeiçoar cada vez mais as democracias, tornando-as mais participativas com a ajuda das tecnologias de comunicação, assim como fazer dos Estados entes mais transparentes quanto às informações de interesse público e controle das contas financeiras.

      Torço para que tudo dê certo por aí e tenho lido algumas notícias sobre a Europa em que países como Portugal, Alemanha e Grécia conseguiram lidar melhor com a prevenção da COVID-19.

      Um abraço e ótima noite pra você e os seus.

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