"E, tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é o meu corpo oferecido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este é o cálice da nova aliança no meu sangue derramado em favor de vós. Todavia, a mão do traidor está comigo à mesa. Porque o Filho do Homem, na verdade, vai segundo o que está determinado, mas ai daquele por intermédio de quem ele está sendo traído! Então, começaram a indagar entre si quem seria, dentre eles, o que estava para fazer isto." (Evangelho de Lucas, capítulo 22, versículos de 19 a 23; versão e tradução ARA)
Como vimos no estudo bíblico anterior, foi dentro de uma atmosfera inovadora e alternativa que o nosso Senhor celebrou a sua última Páscoa. Foi ali também onde ele instituiu um novo pacto (ou aliança) com os seus discípulos e que é extensivo a toda humanidade.
Considero de pouco utilidade debater se o pão consagrado na Ceia torna-se concretamente o Corpo de Cristo, conforme a visão católica da transubstanciação, ou se os elementos da Ceia possuem apenas mero simbolismo. Creio, acima de qualquer doutrina, que a Igreja é o Corpo vivo onde a comunhão independe de rituais, da presença de sacerdotes ou de um lugar específico para fins de culto. Aliás, reduzir a Ceia a um simples rito religioso seria esvaziá-la de seu conteúdo essencial. É trocar o seguimento de Jesus por uma tradição que se tornou substitutiva da antiga cultura de sacrifícios pelo pecado, sem promover a devida ruptura de valores com uma mudança de atitude/mentalidade.
O partir do pão precisa ser visto como um gesto motivador da nossa conduta dentro da comunidade, na busca da realização da justiça e na construção do Reino de Deus. Em muitos casos, isto pode exigir até um "sacrifício" de nossa parte. Por isso, na bimilenar história eclesiástica, tivemos pessoas em todos os séculos que vieram a ser martirizadas por defenderem verdadeiramente a causa do Evangelho. Muitas foram perseguidas e maltratadas até pelas próprias lideranças da Igreja.
Entendo que o trecho bíblico acima transcrito, o qual fala acerca da Ceia, seria a chave interpretativa para compreendermos o restante do relato acerca do sofrimento de Jesus, afim de que o leitor sempre se lembre de que não está diante de uma narrativa qualquer sobre a crueldade humana. O martírio do Senhor deve ser encarado como a sua amorosa doação pela humanidade, proporcionando um significado especial à profecia de Isaías 53, o que ajuda a explicar a centralidade da cruz na vida cristã em todos os seus aspectos. Falo não de um objeto idolátrico ou de decoração, mas, sim, de uma escolha existencial em favor do próximo.
Ao falar de uma nova aliança, feita com seu sangue, Jesus pode ter tomado de empréstimo as palavras dos versos 31 e 32 de Jeremias 31. Nosso Mestre oferece aqui algo eterno e inquebrável que não mais depende da repetição dos antigos sacrifícios de animais conforme o sistema penitencial da legislação de Moisés. Antes estamos diante de um pacto de elevado nível consciencial em que Deus considera cancelados todos os nossos pecados. Assim, agraciados incondicionalmente, independente das obras feitas, passamos a viver dentro de um outro padrão ético, perdoando o irmão da mesma maneira como fomos perdoados pelo Pai Celestial. Se falhamos, não mais temos que cultivar dentro de nós a culpa que é coisa cancerosa e improdutiva. A atitude correta torna-se a reparação voluntária do mal dentro da prática contínua do bem, visto que o amor compõe a essência de Cristo. Por isso, vale a pena citarmos brevemente uma parte da primeira epístola joanina:
"Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo; e ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro." (1Jo 2:1-2)
Certamente que a traição é um acontecimento que nos acompanha desde que Jesus celebrou esse novo pacto. A mão do traidor encontra-se ainda conosco à mesa porque se trata da própria covardia humana visto que o caráter de todos nós requer que nos mantenhamos num contínuo processo de arrependimento e de mudança interior. E, se aprofundarmos a reflexão, veremos que há em todos um potencial enorme para trair a causa do Reino sendo certo que Jesus sabia muito bem disso. Por isso o Senhor preferiu não revelar quem especificamente iria lhe entregar para os guardar do sumo-sacerdote instantes depois dos discípulos participarem da Ceia. Afinal, as mãos de todos estavam com ele à mesa e creio que o texto bíblico quer justamente que façamos essa auto-análise ao invés de procurarmos o Judas no outro (ler o artigo "Ora, Satanás entrou em Judas...", de 08/11). Senão, vamos ao que ensinou Paulo à Igreja em Corinto bem como a todas as igrejas de ontem e hoje:
"Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim, coma do pão, e beba do cálice; pois quem come e bebe sem discernir o corpo, com e bebe juízo para si." (1ªCo 11:28-29)
Pode-se dizer que Judas Iscariotes sofreu severo juízo não porque teria comido um pão consagrado para, em seguida, trair a Jesus. Prosseguindo nesse paralelo de Lucas com a carta paulina, podemos concluir que é o próprio comportamento da pessoa que atrai condenação. Se somos disciplinados pelo Senhor, estamos salvos da nossa maldade. Porém, se continuamos a conduzir nossas vidas irrefletidamente, ou sendo dominados pela ganância, pela vaidade e/ou pela cobiça, praticamos uma conduta que se torna espiritualmente suicida.
"Eis a razão por que há entre vós muitos fracos e doentes e não poucos que dormem [estão mortos]." (1ªCo 11:30)
Tenho plena convicção de que Jesus jamais desejou o fim trágico de Judas, mas o Mestre nada pôde fazer intercedendo por ele porque a atitude tomadas pelo discípulo foi fruto do seu livre arbítrio. Esta, aliás, é uma esfera que o próprio Criador respeita auto-limitando-se de maneira que todos precisamos agir de igual modo quanto à liberdade de escolha de cada um, por mais que sejam opções ruins e destrutivas. Trata-se muita das vezes do processo de aprendizado de vida da pessoa.
Meus amados, pecado é coisa muito séria! Não é algo com o qual possamos brincar pensando que, depois de consumado, emendamos daqui e dali e tudo então ficará bem. Isto é puro engano maligno! Porque ao homem não é permitido comer do "fruto do conhecimento bem e do mal", isto é, arrogar ter o mesmo controle soberano do seu Criador. Lembremos dos erros de Adão, Caim, Esaú, Moisés, Jefté, Gideão, Saul, Davi, Salomão, dos monarcas de Israel e de Judá, bem como de tantos outros personagens bíblicos. Muitas vezes, pela misericórdia divina, escapamos das ciladas que nós mesmos preparamos. Outras vezes, porém, as pessoas acabam entrando num caminho sem conseguirem mais retornar. Podem até encontrar a salvação após o túmulo, mas morrem aqui prematuramente ou colhem resultados bem infelizes que chegam a ser profundamente dolorosos durante um longo tempo. Assim, Judas foi um entre os doze apóstolos de Jesus que veio a se perder prendendo-se na armadilha da culpa a ponto de não sair mais dela.
Jamais pense em trair a causa do Reino!
Concluo este artigo, portanto, direcionado o foco não na traição, mas na nossa fidelidade, a qual deve ser selada pelo pão partido e pelo nível de consciência proporcionado pela pedagogia da nova aliança. Jesus não nos chamou para o fracasso espiritual e, por isso, o Senhor nos convida para tomarmos assento em sua mesa. Seu sangue já foi derramado em nosso favor para compreendermos o perdão, a graça e a aceitação incondicional de Deus. Com Cristo aprendemos a nos libertar dos sistemas penitenciais dos templos de modo que hoje devemos caminhar livres do domínio do pecado e da culpa.
"Rendei graças ao SENHOR, porque ele é bom,
porque a sua misericórdia dura para sempre."
(Salmo 118:29)
Glória a Deus porque nos trouxe tão maravilhosa restauração, possibilitando que, apesar dos tropeços de nossa caminhada, prossigamos de pé rum à plenitude do seu Reino. E que venha o Reino de Deus!
OBS: A ilustração acima ao célebre quadro A última ceia pintada entre 1495-1498 pelo grande gênio da humanidade Leonardo di ser Piero da Vinci (1452-1519). A obra encontra-se no Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, Itália. Extraí do acervo virtual da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Leonardo_da_Vinci_-_The_Last_Supper_high_res.jpg
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