Como vimos no estudo bíblico anterior, Jesus tinha ido ao Monte das Oliveiras afim de orar, preparando-se interiormente para suportar o seu sofrimento conforme as Escrituras hebraicas previam acerca do Filho do Homem. No entanto, ele havia encontrado os discípulos dormindo pelo que lhes advertiu repetidamente sobre a importância da oração "para não entrarem em tentação" (Lc 22:46). Mas, naquele mesmo momento, o grupo foi então surpreendido com a chegada da guarda do Templo, a qual viera com o intuito de prender o Mestre, de maneira que nem foi possível haver uma outra chance para eles colocarem em prática o reiterado ensinamento.
"Falava ele ainda, quando chegou uma multidão; e um dos doze, o chamado Judas, que vinha à frente deles, aproximou-se de Jesus para o beijar. Jesus, porém, lhe disse: Judas, com um beijo trais o Filho do Homem? Os que estavam ao redor dele, vendo o que ia suceder, perguntaram: Senhor, feriremos à espada? Um deles feriu o servo do sumo sacerdote e cortou-lhe a orelha direita. Mas Jesus acudiu, dizendo: Deixai, basta. E, tocando-lhe a orelha, o curou. Então, dirigindo-se Jesus aos principais sacerdotes, capitães do templo e anciãos que vieram prendê-lo, disse: Saístes com espadas e porretes como para deter um salteador? Diariamente, estando eu convosco no templo, não pusestes as mãos sobre mim. Esta, porém, é a vossa hora e o poder das trevas." (Evangelho de Lucas, capítulo 22, versículos de 47 a 53; versão e tradução ARA)
Podemos destacar pelo menos quatro pontos da narrativa do 3º Evangelho sobre o episódio da prisão de Jesus. Seriam a já comentada falta de preparação espiritual dos discípulos, o beijo traidor de Judas, o uso da violência por um dos seguidores para defender o Mestre, e as palavras que o Senhor dirigiu aos que vieram detê-lo portando armas como se estivessem atrás de um bandido. Extraímos daí importantes aprendizados para a Igreja e para a humanidade em geral a partir da leitura atenta desse texto bíblico em análise. O autor sagrado nos ensina aqui a não medirmos forças físicas na luta pela construção do Reino de Deus, mas, sim, exercitarmos uma paciência pacífica sem perdermos a fé enquanto os acontecimentos vão sendo cumpridos.
Judas escolheu uma maneira horrível de traição usando de um gesto que entendemos ser uma expressão amorosa de afeto. Contudo, tal ato mostra-se como uma representação da reprovável conduta humana capaz de se relacionar com o comportamento que todos temos em maior ou menor grau. De acordo com o nosso poeta Augusto dos Anjos (1884-1914), em Versos Íntimos,
"O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja."
A traição é o que assistimos cotidianamente nos corredores dos palácios, isto é, na nossa apodrecida política que governa os povos desta Terra. Quer seja entre as autoridades eleitas ou em quanto ao cidadão comum que, durante os períodos de campanha eleitoral, é cumprimentado e até beijado pelos mensaleiros da vida. Aliás, pode-se dizer que essa conduta banalizada entre os políticos brasileiros já faz até parte do "jogo" na luta que travam pelo poder.
Porém, a todo instante, a causa do Reino é também traída dentro da própria Igreja de Cristo. Não raramente, líderes espirituais permitem-se seduzir pelas riquezas, pelo poder e pela fama. Deixam de pregar o Evangelho como deveria ser feito para dizerem aquilo que alegra aos ouvintes das multidões, como os discursos sobre uma vida feliz e próspera, prometendo soluções imediatas para os problemas das pessoas. Querem atrair um grande úmero de seguidores que lotem estádios e contribuam com gordas ofertas financeiras de modo que tais pastores pouco dão importância à transformação do caráter, à conversão/arrependimento dos pecados e à esquecida solidariedade cristã, a qual precisa promover transformações positivas na sociedade. Muitos, aliás, iludem o público alimentado nos ouvintes o desejo de aquisição de um automóvel, de eletrodomésticos novos, um emprego melhor, o negócio próprio e também se aproveitam do sonho da casa própria que uma expressiva parcela da população do país tanto necessita.
Como podemos conferir, Jesus não se enganou com o beijo falso de Judas assim como não foi seduzido pela espada desembainhada. Seus seguidores perguntaram se deveriam fazer uso das armas quando os soldados chegaram e um deles nem aguardou pela resposta. Mostrando uma total falta de compreensão acerca do que possa ter sido o último ensino ministrado na Ceia (22:35-38), um dos discípulos nem ao menos esperou a resposta à pergunta formulada pelos demais companheiros e resolveu cortar a orelha direita do servo do sumo sacerdote. Porém, tendo o Mestre se deparado com tamanha surdez espiritual, ele repetiu então o seu pronunciamento feito no episódio das duas espadas: "Deixai, basta" (22:51; conf. com 22:38). E ali teria sido realizado o último milagre do Senhor antes de morrer quando restaurou o pavilhão auricular do homem significando, assim, o restabelecimento da "audição" da Igreja.
Acho interessante os evangelistas sinóticos preservarem a identidade de quem feriu o servo do sumo sacerdote. Tal situação deve levar a Igreja a refletir sempre sobre a incompatibilidade de um comportamento de violência em relação ao verdadeiro discipulado de Cristo. Por isso, não podemos nos deixar iludir por qualquer tipo de luta armada. Cruzadas, inquisições, guerrilhas, as práticas cruéis dos governos totalitários e os atos de vandalismo nos protestos de rua são condutas incompatíveis com o exemplo de vida deixado por Jesus visto que são práticas incapazes de promover o Reino de Deus. Vale dizer que, em nenhum momento, o Salvador foi um líder triunfalista pois ele encarnou a missão messiânica de um servo sofredor tal como consta em algumas profecias bíblicas (Is 52:13-53:12).
O messianismo de Jesus pode ser contrastado com a atitude dos sacerdotes e guardas que vieram prendê-lo ilegalmente. Essa passagem nos mostra o grau de dependência dos templos em relação aos recursos deste mundo tendo em vista a necessidade de se imporem ideologicamente pela força. Trata-se do uso da coação no lugar da conscientização. Uma conduta que muitos religiosos ainda praticam nos dias atuais mesmo que usando de maneiras diferentes. Quer seja pela influência política, quando uma instituição religiosa tenta fazer valer suas posições nas normas jurídicas/atos oficiais, ou ainda pelo velho discurso de apelo ao medo do tipo: "ou você vira crente ou vai arder no inferno".
No relato paralelo do 1º Evangelho, o Senhor chegou a dizer que ele poderia, no momento de sua prisão, ter pedido ao Pai para lhe mandar socorro por meio de anjos (Mt 26:53). E, quando vejo pastores utilizando-se dos repetidos sermões de "Céu ou inferno?", identifico aí algo incapaz de promover uma conversão genuína porque muitas das vezes a pessoa resolve atender ao chamado para "aceitar Jesus" apenas afim de assegurar o seu "lugar" na eternidade numa preocupação às vezes até egoísta. Não que, com isso, o ouvinte esteja realmente arrependido e disposto a se converter.
Jesus conclui esta seção dizendo que aquela era a hora de seus opositores "e o poder das trevas" (ou, segundo a NVI, "quando as trevas reinam"). Trata-se da passageira ocasião em que o mal causa a falsa impressão de estar prevalecendo e eis aí uma forte razão pela qual os discípulos precisavam permanecer vigilantes e cultivarem a prática frequente da oração. Inclusive para eles não reagirem fazendo uso da força e conseguirem encarar a prisão do Mestre entendendo o propósito de sua missão, a qual é também de toda a Igreja.
Um ótimo final de semana para todos!
OBS: A ilustração acima refere-se a um afresco do pintor italiano conhecido como Fra Angelico (1387-1455) que mostra um dos discípulos de Jesus atacando o servo do sumo sacerdote (direita) durante a prisão de Jesus no Monte das Oliveiras. No centro aparece também o episódio do beijo de Judas. A obra encontra-se no Museu Nacional de São Marcos. Extraí a imagem do acervo virtual da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Fra_Angelico_020.jpg
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