Na tarde da última sexta-feira (27/10/2023) o Juiz Dr. Afonso Henrique Ferreira Barbosa, da 1ª Vara de Fazenda Pública da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, atendendo a um pedido da UERJ, concedeu uma liminar em desfavor dos deputados estaduais Rodrigo Amorim (PTB), Filippe Poubel (PL) e Alan Lopes (PL) entrem e gravem nos espaços públicos da instituição em todo o estado. Segundo fundamentou e decidiu o magistrado,
"(...) É certo que o direito de informação conferido ao parlamentar, aí inserido o de verificar as atividades executadas pelo Poder Executivo, não lhe confere a possibilidade de agir, de forma acintosa e desrespeitosa perante repartições públicas, sob pena de violação a autonomia do Executivo, que decorre do princípio da separação dos poderes.
Não tem sustentação constitucional a alegação de exercício da função fiscalizadora, a permanência em repartições públicas por parlamentares, com intuito de criar tumultos e desordens, pois estes são espaços sob administração do Executivo, onde exerce as suas funções, sendo, naturalmente submetida à fiscalização do Legislativo que poderá exercê-la plenamente, porém, sem ofensa ao princípio fundamental da independência e harmonia a que deve observância ambos os Poderes.
Caso entenda o parlamentar que há irregularidades sendo praticadas em repartições ou órgãos da estrutura administrativa do Executivo, deve dirigir sua proposição e/ou pedido ao Presidente da sua Casa Legislativa para que ele, submetendo a pretensão ao plenário (art. 47, da CRFB), adote, se for o caso, meios idôneos para o exercício da função fiscalizadora.
(...)
E o STF assentou entendimento no sentido de que restou estabelecido na CRFB o princípio da colegialidade em matéria de fiscalização, tanto administrativa, quanto financeira, operacional e orçamentária, de forma a respeitar a separação dos poderes (...)
Na hipótese em tela, a partir dos elementos coligidos aos autos, sobretudo os vídeos disponibilizados e os termos de declarações prestadas em sede administrativa e policial, de depreende que, sob o fundamento de que a sua atuação se compreende na função fiscalizadora do Poder e que estaria acobertada pela imunidade material, os réus, de forma desrespeitosa, provocaram tumultos nas dependências da universidade autora.
Ainda que o escopo seja a fiscalização da atividade executiva – o que se insere nas atribuições da Assembleia Legislativa (ALERJ), há limites ao exercício desse poder, e a atuação de forma exacerbada, provocando tumultos, configura excessos que não pode ser admitido, sob pena de permitir, a qualquer político, a pretexto de fiscalização, o direito de insultar qualquer um que esteja atuando perante o Executivo.
Na realidade, há procedimentos a serem observados com vistas a assegurar o direito de fiscalização, os quais, ao menos em juízo de cognição sumária, não foram observados pelos réus.
Com efeito, a competência fiscalizatória do Poder Legislativo não pode ser exercida de forma ilimitada, notadamente por membro individualizado do Poder sem que se constitua Comissão, a que a respectiva Casa tenha atribuído poderes, devendo observância aos ditames previstos na Constituição da República, que não prevê acesso ilimitado a órgãos ou repartições públicas, bem como a todo e qualquer documento.
A Constituição da República, em seus arts. 70 a 75, dispõe sobre a forma como deve ocorrer a fiscalização orçamentária, financeira e contábil a ser realizada pelo Poder Legislativo de forma direta e com o auxílio do respectivo Tribunal de Contas. Por se tratar de capítulo que dispõe acerca da separação dos poderes e do sistema de freios e contrapesos, trata-se de normas de repetição obrigatória nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas.
Nesse contexto, a partir da análise do texto constitucional, se constata que não é possível extrair de seus dispositivos qualquer autorização irrestrita a membros do Poder Legislativo para ingresso em prédios públicos, para obtenção de documentos ou outras exigências, pois é necessário que qualquer inspeção ou auditoria em órgãos ou contratos sejam realizados mediante requerimento do Poder Legislativo aos Tribunais de Contas (órgãos auxiliares do Poder Legislativo) e não de seus membros em suas próprias razões.
Inexiste a possibilidade de controle pessoal dos atos do poder público, com exposição midiática, a pretexto de “fiscalização”, a afrontar o princípio da impessoalidade imposto à administração, conforme art. 37, caput, da Constituição da República.
(...)
Por tais fundamentos, presentes os requisitos, DEFIRO a tutela de urgência para determinar a proibição de os Réus, sem autorização da respectiva Casa Legislativa, na forma do art. 49, inciso X e 50 da CRFB, sob pena de multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais):
a) de adentrarem ao espaço público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em quaisquer dos seus campus, sem autorização, para praticar quaisquer atos de fiscalização, apreensão de documentos, equipamentos e/ou dados, bem como conduzir servidores para delegacias de polícia ou qualquer outra instituição, sem flagrante delito;
b) de promoverem a filmagem de instalações internas e/ou transitar por áreas restritas aos servidores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em quaisquer dos seus campus;
Ademais, determino a retirada de todo e qualquer conteúdo audiovisual filmado de suas redes sociais na data do evento, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por cada dia ou fração de dia em que a conduta for exibida ou mencionada, sem prejuízo de expedição de Ofício aos administradores das plataformas, para que procedam à retirada do conteúdo."
(Processo n.º 0932788-34.2023.8.19.0001)
Apesar de não ser nem um pouco fã desses três deputados (bolsonaristas), em que um deles chegou a rasgar publicamente uma placa em homenagem à Marielle Franco, tenho minhas discordâncias quanto ao entendimento exposto na respeitável decisão do julgador de primeiro grau.
A princípio deve ser considerado que o direito do parlamentar fiscalizar individualmente se encontra previsto na própria Constituição do Estado do Rio de Janeiro, mais precisamente nos parágrafos 9º e 10 do artigo 102 da Carta, que assim diz:
"§ 9º Autoriza o livre acesso a deputados estaduais, independentemente de serem membros de Comissões Permanentes ou Temporárias da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, aos órgãos e empresas da Administração Pública Estadual direta e indireta, para fins de fiscalização de assuntos relacionados à atividade parlamentar. (Acrescentado pela Emenda Constitucional nº 74, de 18 de dezembro de 2019)
§ 10. Garante a presença, aos Deputados Estaduais, de assessoria e equipamento de gravação de áudio e vídeo, para viabilizar a fiscalização dos Órgãos Públicos da Administração Direta, Indireta, Fundacional e Autárquica do Estado do Rio de Janeiro e a fiscalização na aplicação de recursos financeiros no âmbito estadual para assuntos relacionados à atividade parlamentar, de acordo com o disposto no Artigo 5º, V, X e XXXIII da Constituição Federal. (NR) (Acrescentado pela Emenda Constitucional nº 88, de 30 de junho de 2021)"
A meu ver, o fato dos parlamentares ingressarem no campus da UERJ a fim de fiscalizar a cobrança do estacionamento, a fim de verificar eventual irregularidade, por si só, não viola a Constituição Federal e, como demonstrado, estaria de acordo com a Carta Fluminense. Também não vejo nada de errado confeccionar um registro audiovisual e darem publicidade ao material.
Com todo respeito aos nobres colegas que atuam no órgão de representação jurídica da UERJ e subscreveram a peça inaugural da ação proposta, tenho um pensamento que, em parte, diverge dos fundamentos expostos na petição. Pois, pelo que observei, a Procuradoria da universidade adotou um posicionamento conservador quanto à fiscalização do Legislativo sobre o Executivo enquanto entendo ser o livre ingresso nas repartições públicas, bem como o livre acesso a documentos, direitos implícitos da própria atividade parlamentar. Aliás, o próprio poder de requisitar informações ao poder Executivo é reconhecido também quanto ao cidadão que o exerce nos termos da LAI que é a Lei Federal n.º 12.527/2011, cujo artigo 10 caput assim dispõe:
"Art. 10. Qualquer interessado poderá apresentar pedido de acesso a informações aos órgãos e entidades referidos no art. 1º desta Lei, por qualquer meio legítimo, devendo o pedido conter a identificação do requerente e a especificação da informação requerida." (destaquei)
Importante dizer que a questão aqui tratada de modo algum guardaria uma relação com a separação dos Poderes já que a norma da nossa Constituição Estadual em momento algum tenta subordinar o Executivo ao Legislativo, mas, sim, positivar o direito que qualquer parlamentar tem de fiscalizar (num sentido genérico) a Administração Pública. Inclusive o acesso do deputado precisaria ser livre, exceto em situações justificáveis como naquelas em que há um sigilo legal em razão da privacidade, algum risco de vida, grave prejuízo à prestação de um serviço essencial, etc.
Logicamente que tudo deve ser feito com razoabilidade pois, em tese, não veria razões para um vereador ou deputado querer ingressar imediatamente numa UTI ou numa sala de cirurgia a ponto de surpreender sem uma razão justificada o trabalho dos médicos, a exemplo de como extrapolava o Gabriel Monteiro no Rio de Janeiro.
Ora, lendo a petição inicial da UERJ, verifica-se que, de fato os deputados extrapolaram quanto ao exercício de um direito. Senão vejamos a narrativa dos fatos constantes na peça distribuída em 03/10/2023:
"(...) na última quarta-feira, dia 27.09.20234, entre 21:50h e 23:00h os três Réus, na companhia de assessores e policiais, se dirigiram à sede da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no Maracanã, e de forma desrespeitosa, autoritária e arbitrária, pretenderam realizar “fiscalização parlamentar” sobre o movimento financeiro do estacionamento da UERJ.
A motivação alegada pelos parlamentares (no momento da invasão) teria sido a suspeita de que servidores públicos da UERJ, cujos atos estão acobertados pela presunção de legalidade e legitimidade, estivessem, pretensamente, desviando dinheiro com a cobrança irregular de estacionamento em dias de jogos no Maracanã.
Para legitimar suas suspeitas, os Réus alegavam falhas nos mecanismos de recolhimento dos valores, ausência de emissão de documentos fiscais, inconsistência e “falta de transparência” dos controles contábeis internos.
Nenhum dos Réus informou, contudo, como, quando ou quem estaria “desviando valores”, razão pela qual suas alegações permaneceram no campo das “hipóteses”. A indignação dos parlamentares residia apenas e tão somente na forma de controle da cobrança cuja “suposta fragilidade” ou “falta de “transparência”, daria ensejo a prática de “reiterados crimes” por parte dos servidores da UERJ, acusações essas, repita-se, que em nenhum momento foram demonstra- das ou provadas.
Insatisfeitos por não encontrarem qualquer crime ou irregularidade, como para justificar a incursão com todo aquele aparato de pessoas, os Réus decidiram julgar “insuficientes” tanto os documentos apresentados pelos servidores, quanto as afirmações prestadas por eles e, em atitude autoritária passaram a gritar, intimidar servidores (incluindo mulheres), ofender e proferir afirmações generalizadas no sentido de que servidores da UERJ seriam “estelionatários” e teriam cometido “peculato”. Ao final, mesmo sem ordem judicial, apreenderam documentos públicos (sem lavrar auto de apreensão) e chegaram ao estremo de dar voz de prisão aos servido- res (sem que qualquer delito estivesse em andamento).
Tais comportamentos, à evidência, demonstravam, naquele momento, um claro viés político-partidário, com o propósito exclusivo de tumultuar a marcha da administração pública, sem se importar, de fato, com os reflexos dos seus atos, com os prejuízos que estavam causando e com a inadequação dos meios utilizados.
Ficou evidenciado que a intenção sub-reptícia dos RÉUS, na ocasião, era mesmo a de intimidar os servidores que estavam ali desempenhando suas funções para produzir vídeos para as redes sociais e angariar apoio político de seus seguidores, como costumeiramente costumam fazer.
As provas desses atos arbitrários estão em vídeos gravados pela UERJ (disponíveis nos links indicados no anexo) e que serão igualmente entregues em mídia ao Juízo e pelos próprios Réus, estando um deles, inclusive, publicado na rede social do próprio deputado Poubel5.
Ressalta-se que a partir da chegada dos deputados à Universidade, o local se tornou um verdadeiro palco para falta de educação, para o desrespeito e o exercício das mais variadas ilegalidades, no qual a única coisa que não se buscava era a transparência das receitas auferidas pela Universidade para custear parcela de suas despesas, mas sim a autopromoção dos políticos envolvidos.
As cenas de grosseria e selvageria praticadas pelos deputados estão em suas páginas pessoais e são expostas com orgulho pelos RÉUS. Isso só demonstra o óbvio: o intuito não era fiscalizatório, mas sim a autopromoção por meio de condutas ilegais: agressões, excesso de poder e desvio de finalidade.
Por todos esses fatos a Autora busca a tutela do Judiciário, a fim de evitar que tais atos ilegais voltem a ser repetir."
Apesar de entender que os parlamentares, mesmo atuando individualmente, têm o direito de ingressar nas dependências dos órgão da Administração Pública e de produzir registros audiovisual em tais ambientes, tudo precisa ser feito com razoabilidade, tratando servidores e demais autoridades com dignidade e respeito, sem expor publicamente pessoas comuns em mídias sociais. Daí, mesmo discordando da fundamentação dada pelo Juiz, certo é que as suas determinações obstruem a perpetuação do suposto abuso desses parlamentares, muito embora os mesmos não poderão permanecer indefinidamente impedidos quanto ao exercício dos direitos previstos nos parágrafos 9º e 10 do art. 102 da Constituição Estadual. E, mais do que nunca, uma vez apurados os fatos em favor da universidade, os três precisam ser disciplinados pela ALERJ e podem ser condenados a pagar danos morais a quem eles tenham eventualmente prejudicado quanto a alguma desabonadora divulgação indevida de imagem nas redes de internet.
Inegável é que, se de um lado existe o direito do parlamentar de fiscalizar, do outro ele está sujeito a ser punido pela falta de decoro, o que é capaz até de justificar uma eventual cassação de mandato, de acordo com o art. 104, inciso II, da Constituição Estadual:
"Art. 104 - Perderá o mandato o Deputado:
(...)
II - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;"
Outrossim, mesmo não sendo fã dos parlamentares (bolsonaristas), temo que essa ação proposta pela UERJ leve o Tribunal de Justiça a um julgamento desfavorável quanto aos parágrafos 9º e 10 do art. 102 da Carta Estadual, razão pela qual entendo ser indispensável a disciplina da ALERJ sobre a conduta abusiva, sem a necessidade de haver uma cassação dos mandatos.
Oportunamente, os réus ainda serão citados, terão o prazo processual contado em dias úteis para apresentarem as suas defesas e recursos contra a respeitável decisão monocrática do órgão de primeiro grau, caso queiram. Porém, no presente momento, precisam cumprir a ordem judicial e, enquanto a liminar estiver valendo, não poderão mais ficar entrando na UERJ ou em qualquer outra repartição da Administração Estadual com a justificativa de estarem ali para "fiscalizar".
Vamos acompanhar!
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