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terça-feira, 1 de janeiro de 2019

O que nos diz o evento do Pentecostes?



Ainda ontem (31/12/2018), eu e minha esposa Núbia estávamos a ler o capítulo 2º do livro de Atos dos Apóstolos, o qual fala a respeito da "descida" do Espírito Santo sobre a Igreja, sendo esta uma narrativa muito referenciada pelos seguidores do ramo dito "pentecostal" no diversificado meio eclesiástico. Diz o autor sagrado que:

"Chegando o dia de Pentecoste, estavam todos reunidos num só lugar. De repente veio do céu um som, como de um vento muito forte, e encheu toda a casa na qual estavam assentados. E viram o que parecia línguas de fogo, que se separaram e pousaram sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito os capacitava. Havia em Jerusalém judeus, tementes a Deus, vindos de todas as nações do mundo. Ouvindo-se este som, ajuntou-se uma multidão que ficou perplexa, pois cada um os ouvia falar em sua própria língua. Atônitos e maravilhados, eles perguntavam: 'Acaso não são galileus todos estes homens que estão falando? Então, como os ouvimos, cada um de nós, em nossa própria língua materna? Partos, medos e elamitas; habitantes da Mesopotâmia, Judéia e Capadócia, Ponto e da província da Ásia, Frígia e Panfília, Egito e das partes da Líbia próximas a Cirene; visitantes vindos de Roma, tanto judeus como convertidos ao judaísmo; cretenses e árabes. Nós os ouvimos declarar as maravilhas de Deus em nossa própria língua!' Atônitos e perplexos, todos perguntavam uns aos outros: 'Que significa isto?' Alguns, todavia, zombavam deles e diziam: 'Eles beberam vinho demais'." (At 2:1-13; NVI)

Sem dúvida, há um forte simbolismo nesta passagem e muitas são as reflexões que podem ser estabelecidas a partir daí. Porém, prefiro iniciar sempre pelo seu contexto dentro do próprio livro de Atos para então fazer outros voos no restante das Escrituras e fora delas.

Ora, já no primeiro capítulo, antes de sua ascensão, Jesus havia anunciado aos discípulos algo acerca desse marcante acontecimento e que iria tornar o Espírito Santo o personagem principal da narrativa, inspirador dos atos missionários de Pedro, João, Estêvão, Felipe, Barnabé, Paulo e dos demais discípulos. Senão vejamos o que diz ali: 

"Certa ocasião, enquanto comia com eles, deu-lhes esta ordem: 'Não saiam de Jerusalém, mas esperem pela promessa de meu Pai, da qual lhes falei. Pois João batizou com água, mas dentro de poucos dias vocês serão batizados com o Espírito Santo'. Então os que estavam reunidos lhe perguntaram: 'Senhor, é neste tempo que vais restaurar o reino a Israel?' Ele lhes respondeu: 'Não lhes compete saber os tempos ou as datas que o Pai estabeleceu pela sua própria autoridade. Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra'." (At 1:4-8; NVI) - destaquei

Podemos considerar que, com a experiência do batismo com o Espírito Santo, os apóstolos se tornariam capacitados para pregar as boas novas de Jesus em todo o mundo. Ou mais, seriam, pelo texto, suas "testemunhas", o que, de fato, irá se desenvolver no decorrer da obra, começando por Jerusalém (capítulos 3 a 8), depois expandindo-se para as regiões da Judeia e Samaria, mais a Antioquia da Síria (caps. 8 a 12) e, finalmente aos "confins da terra"(do cap. 13 em diante).

Se bem refletirmos, levando em conta o que foi narrado em Lucas (o primeiro livro do autor), Jesus esteve por cerca de três anos ensinando os seus discípulos sobre o Reino de Deus e lhes enviando para que fizessem nas cidades de Israel as mesmas obras que ele. A Igreja estava materialmente formada através daquela comunidade de seguidores que passou a se reunir em Jerusalém com o propósito de orar, formando já um corpo constituído por vários membros.

Todavia, era um corpo no qual ainda faltava entrar o espírito! E aí, aproveitando a simbologia do som de um vento forte, umas das comparações que faço, dentro da própria Bíblia, seria em relação ao segundo relato da criação do homem que se encontra lá em Gênesis 2:

"Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente." (Gn 2:7; NVI)

Assim sendo, a descida do Espírito Santo sobre a Igreja pode ser comparada com esse "sopro" nas narinas de Adão que lhe deu vida. Isto é, com o acontecimento do Pentecostes, aquela comunidade de discípulos torna-se então um ente vivo e capaz de operar influentemente no meio social.

Ora, com observância na citação acima de Atos 1, os discípulos nem mesmo compreendiam o que viria a ser o batismo com o Espírito Santo. Tanto é que um deles indagou a Jesus se seria nesse tempo que a soberania (o "reino") de Israel viria a ser restabelecida, tal como esperavam os demais judeus daquela época em relação à vinda do Messias. Logo, com a experiência do pentecostes, os seguidores de Jesus passariam a ter uma melhor compreensão dos propósitos divinos ainda que tal entendimento se desse aos poucos em suas mentes.

Uma segunda comparação que podemos fazer com essa passagem em estudo seria no tocante ao inverso do que ocorreu no episódio da Torre de Babel que se encontra também em Gênesis, mas no capítulo 11. Ali  a humanidade seria monolinguística e estava unida num propósito contrário à vontade divina de modo que o acontecimento que se desenrola será a confusão seguida da dispersão, com o abandono daquela obra:

"No mundo todo havia apenas uma língua, um só modo de falar. Saindo os homens do Oriente, encontraram uma planície em Sinear e ali se fixaram. Disseram uns aos outros: 'Vamos fazer tijolos e queimá-los bem'. Usavam tijolos em lugar de pedras, e piche em vez de argamassa. Depois disseram: 'Vamos construir uma cidade, com uma torre que alcance os céus. Assim nosso nome será famoso e não seremos espalhados pela face da terra'. O Senhor desceu para ver a cidade e a torre que os homens estavam construindo. E disse o Senhor: 'Eles são um só povo e falam uma só língua, e começaram a construir isso. Em breve nada poderá impedir o que planejam fazer. Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros'. Assim o Senhor os dispersou dali por toda a terra, e pararam de construir a cidade. Por isso foi chamada Babel, porque ali o Senhor confundiu a língua de todo o mundo. Dali o Senhor os espalhou por toda a terra." (Gn 11:1-9; NVI)



Todavia, eis que, no Pentecostes, vemos o entendimento no lugar da confusão. Os idiomas e, por que não dizer, a cultura, deixa de ser barreira para a compreensão do propósito do Reino de Deus. A Igreja torna-se então uma entidade universalista e multinacional, sem o etnocentrismo das religiões dos povos, em que interessaria agora transmitir uma mensagem de arrependimento e de mudança de vida numa linguagem em que o outro pudesse compreendê-la.

Sendo assim, devemos ver as boas novas de Cristo como algo simples, acessível e bem leve de serem compreendidas, cabendo ao evangelista não trazer consigo nenhuma espécie de bagagem extra na sua comunicação. E, se possível, buscar meios de identificação com o destinatário da mensagem, respeitando a cultura e o modo de vida deste. Inclusive, ter a mente sempre aberta para também aprender com as pessoas por ele contactadas.

Um grave erro de quem muitas das vezes se propõe a anunciar o testemunho de Jesus é se considerar arrogantemente o dono de Deus e/ou da verdade. E, no contato com os outros povos, podemos dizer que a Igreja muitas das vezes comportou-se de maneira reprovável quando se tornou um instrumento de aculturação a ponto de inúmeros missionários terem, por exemplo, ignorado os sábios ensinamentos das tribos indígenas, pretendendo alterar o modo de vida de seus integrantes por motivo de choque de valores culturais.

Embora eu seja contra que o governo impeça o ingresso dos religiosos nas aldeias dos índios (cabe a estes decidirem se receberão ou não visitantes), considero também que, não raramente, tais missões em nada contribuem para o bem estar dessas pequenas nações existentes em nosso vasto território. Pois, ao invés das igrejas irem até às tribos com a finalidade de partilhar uma ideia de maneira recíproca, o que acaba ocorrendo é um assédio de consciência por métodos de coação psicológica.

Em Atos 2, Pedro, após concluir a sua pregação , foi indagado pelos ouvintes acerca do que deveriam fazer e a sua resposta demonstrou como é a simplicidade do Evangelho:

"Quando ouviram isso, os seus corações ficaram aflitos, e eles perguntaram a Pedro e aos outros apóstolos: 'Irmãos, que faremos?' Pedro respondeu: 'Arrependam-se, e cada um de vocês seja batizado em nome de Jesus Cristo, para perdão dos seus pecados, e receberão o dom do Espírito Santo'." (Atos 2:37,38; NVI)

Talvez aí muitos críticos da religião cristã dirão que a ideia de pecado trazida pela Igreja também constituiria uma espécie de violência ou assédio de consciência. Porém, o que entendo dessa passagem seria que a sua ideia central se resume na mudança de caráter, com o reconhecimento individual dos próprios erros cometidos seguido de uma mudança de mentalidade.

É certo que até nisso o evangelista precisa ser cauteloso no respeito dos valores culturais e pessoais do destinatário da mensagem bem como em relação à caminhada evolutiva de cada um. E, deste modo, cabe ao comunicador das boas novas compreender o contexto no qual as pessoas vivem, permitindo que elas mesmas venham a se posicionar sobre o que entendem ser certo ou errado e como mudarão suas respectivas condutas.

Passados quase dois mil anos, percebo que a Igreja precisa mais uma vez retornar ao Pentecostes. Não para buscar ter experiências com o sobrenatural, na expectativa de que os milagres das narrativas bíblicas precisem se repetir nos dias atuais, mas, sim, para compreender o significado daquela manifestação da "descida" do Espírito Santo muito bem simbolizada em Atos 2.

Para finalizar, quero desejar aqui um feliz 2019 a todos e que possamos iniciar o novo ano dentro do propósito de construção de uma nova realidade nas nossas vidas, com união, solidariedade, muita convivência humana e amor. 

OBS: Texto originalmente postado por mim no blogue Confraria Teológica Logos e Mythos. A primeira imagem acima trata-se de foi uma representação ocidental do Pentecostes, pintado pelo artista francês Jean II Restout, em 1732. Já a segunda e a terceira dizem respeito às duas das três obras sobreviventes A Torre de Babel, de Bruegel, o Velho (1563).

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