Que o resultado de uma eleição legítima deve ser reconhecido, qualquer democrata haverá de concordar, seja ele de esquerda ou direita. Porém, a vitória de um pleito não significa que estejamos proibidos de avaliar de maneira crítica e reflexiva as escolhas feitas por uma determinada coletividade de pessoas, a exemplo do que assistimos no último domingo, no país vizinho.
Antes de debater sobre o assunto, queria entender melhor por que o eleitor argentino votou em Javier Gerardo Milei, justamente num momento em que a esquerda democrática no continente andava se alinhando e a volta de Lula significou uma esperança para a América do Sul?!
Como nossos vizinhos do sul puderam se deixar seduzir por promessas de soluções fáceis, tendo o histórico de uma experiência mal sucedida num passado não tão distante que foi a catastrófica dolarização vivida na época de Carlos Menem e do seu ministro Domingo Cavallo, quando se adotou o câmbio fixo?!
No entanto, Milei pretende ir mais fundo. Sua proposta é a de renunciar à moeda do próprio país, passando a adotar o dólar dos Estados Unidos, num entreguismo total...
Se as crises inflacionárias são capazes de levar as pessoas ao desespero, ainda mais com taxas anuais acima dos 100% (cem por cento), disso não tenho dúvidas. Contudo, essa perda de autonomia não somente atenta contra a própria soberania nacional de um país como também poderá ser uma verdadeira "camisa de força" que, por sua vez, poderá prejudicar o crescimento da economia, causando desemprego, com prejuízo para as pessoas mais pobres.
Inegável que, para uma economia prosperar, é necessário haver um aparelho produtivo que as desenvolva. Pois somente controlar a inflação não significa, por si só, que haverá mais investimentos com geração de empregos formais. Aliás, os efeitos poderão ser contrários, gerando feridas sociais que dificilmente serão curadas.
A meu ver, não se pode considerar como bem sucedidas as experiências de países menores como El Salvador e Equador, sendo que, neste, a percentagem de pessoas em situação de pobreza aumentou gradativamente nos últimos anos, pois passou de 21,9%, em 2019, para 25,5%, em 2022.
Ressalte-se que, no ano de 2020, o Equador fechou aquele exercício com um déficit público que equivalia a 7% do PIB, sendo que, impossibilitado de emitir ou de desvalorizar a moeda, a única forma de cobrir o déficit fiscal foi através de ajustes neoliberais impopulares, reduzindo gastos necessários em plena pandemia por COVID-19...
Ora, mesmo que a dolarização possa vir a trazer um boom na economia argentina, o que dependerá de um ajuste estrutural na parte fiscal e uma disciplina em relação aos gastos públicos, isso é proibitivo para países da América Latina que têm uma enorme dívida social. Logo, numa nação onde a pobreza atinge mais de 40% da população, como é o caso atual dos nossos vizinhos, o que Milei pretende fazer por lá parece ser uma perversidade.
Enfim, da mesma maneira como o brasileiro errou em outubro de 2018 e depois vimos pessoas num estado quase de indigência entrando em filas para comprar osso, enquanto a carne era exportada no governo Bolsonaro, os nossos hermanos devem ter respeitado o direito de viver as próprias experiências. E, ainda que o MERCOSUL se desfaça, uma vez que perderia qualquer sentido a manutenção do bloco sem a Argentina (ou sem o Brasil), a desconstrução poderá levar a América do Sul futuramente à formação de algo mais sólido a exemplo da União Europeia.
De qualquer modo, sabemos que a história se desenvolve dialeticamente com seus avanços e recuos. Hoje aquilo que é contrário ao nosso ideal de Estado de bem-estar social assusta. Porém, amanhã o confronto de tendências poderá levar o mundo a um momento conciliador.
Sejamos persistentes na luta por um mundo melhor e socialmente mais justo!
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