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terça-feira, 19 de setembro de 2023

O direito do parlamentar em fiscalizar o Poder Executivo



Em 30/05/2022. nove dos treze vereadores de Mangaratiba propuseram uma emenda à Lei Orgânica do Município, com o objetivo de acrescentar quatro novos incisos ao seu artigo 49, buscando uma atualização qualitativa da mesma. Tal dispositivo, para quem não sabe, trata dos atos que são da competência exclusiva da Câmara Municipal e foram acrescentados os incisos XXVI a XXIX, além de outras modificações na LOM, com a justificativa expressa de viabilizar o "exercício eficaz e saudável dos mandatos eletivos outorgados aos representantes da população":


"Art. 49 - É de competência exclusiva da Câmara Municipal:

(...)

XXVI - Sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites das delegações legislativas;

XXVII - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei municipal declara inconstitucional por decisão definitiva do Tribunal de Justiça do Estado;

XXVIII - exercer, por qualquer dos seus membros ou comissão, a fiscalização sobre o funcionamento de quaisquer órgãos públicos ou repartições da esfera administrativa municipal, mediante comunicação ao respectivo órgão ou repartição com antecedência mínima de 24 (vinte e quatro) horas;

XXIX - requerer intervenção estadual, quando necessário, na forma do art. 36, I, da Constituição da República, para assegurar o livre exercício de suas funções;"


Após ter sido promulgada, a Emenda à Lei Orgânica do Município foi publicada no dia 15/06/2022, passando a produzir os seus efeitos jurídicos. Porém, em passado um ano, mais precisamente em 26/07/2023, quando a oposição já era minoria na Casa, o prefeito municipal de Mangaratiba, senhor Alan Campos da Costa, ingressou com uma representação de inconstitucionalidade, com pedido liminar, pretendendo a declaração de inconstitucionalidade do inciso XXVIII do art. 49 da Lei Orgânica do Munícipio de Mangaratiba (em destaque na citação acima), o qual foi acrescido por meio da Emenda n.° 3, de 14 de junho de 2022. Seu argumento perante o Tribunal de Justiça é que a norma em tela 


"(...) não se coaduna com o princípio da separação e harmonia dos Poderes, insculpidos no art. 7° da Constituição do Estado do Rio de Janeiro e no art. 20 da Constituição Federal, além de confrontar diretamente com a competência constitucional atribuída ao Poder Legislativo, prevista nos arts. 99, X; 101 e 127 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro e nos arts. 49, X e 50 da Constituição Federal."


O processo movido pelo prefeito foi distribuído ao Eminente Desembargador Benedicto Abicair, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça, sob o n.º 0059460-10.2023.8.19.0000, em que o magistrado relator condicionou a apreciação da medida liminar à manifestação da Câmara Municipal de Mangaratiba, cuja comunicação ainda é aguardada. Porém, como cidadão que faz um permanente controle social, soube dessa ação pesquisando no portal na internet da nossa Corte Estadual através dos nomes das partes e, movido pelo interesse político (e pela curiosidade), acessei os autos eletrônicos.


Pois bem. Vamos primeiramente aos detalhes dos argumentos do senhor Alan... 


Acerca do art. 49, inciso X, da Constituição Federal, correspondente ao art. 99, X, da Constituição Estadual, as alegações do prefeito seriam que, pela aplicação do princípio da simetria, a fiscalização e o controle dos atos do Poder Executivo são de competência da respectiva Casa Legislativa e não de cada um de seus parlamentares individualmente considerados, razão pela qual citou os dispositivos:


"Art. 99 - Compete privativamente à Assembleia Legislativa:

X - fiscalizar e controlar os atos do Poder Executivo, inclusive os da administração indireta;"


Prosseguindo o prefeito na sua petição, a qual é assinada pelos digníssimos procuradores do Município, aduziu que a fiscalização legislativa seria atribuída privativamente à Câmara, como uma órgão colegiado, mediante o controle externo exercido pelos Tribunais de Contas, de acordo com o art. 31 da Carta Magna, e que, por isso, a norma em questão estaria extrapolando os limites da Constituição Federal ao permitir que vereadores exerçam a fiscalização individualmente:


"A norma ora censurada permite que os Vereadores, individualmente (e não como representantes de Comissões Legislativas e da Casa de Leis), tenham livre acesso às repartições públicas municipais e a todas às áreas sob jurisdição municipal, podendo, ainda, diligenciar com acesso a documentos junto a toda entidade da administração pública do Município, sem que, contudo haja tal permissivo no texto constitucional.

(...)

De acordo com arquétipo constitucional, o Poder Legislativo exerce fiscalização sobre o Poder Executivo, a luz do sistema de “freios e contrapesos”, sendo que este mister é feito excepcionalmente e limitado às hipoteses previstas na Constituição Federal e na Constituição Estadual, sem sobreposições (princípio da separação e harmonia dos Poderes constituídos) e sem prerrogativas de índole individual.

Em razão disso, a fiscalização do Poder Legislativo sobre os atos do Poder Executivo só pode ocorrer pelos instrumentos constitucionalmente previstos, como, por exemplo, a utilização de requerimentos de informações, a convocação de autoridades para esclarecimentos, o procedimento de tomadas de contas municipais, dentre outros, mas sempre por deliberação do colegiado do órgão e nunca pelo exercício individual de cada parlamentar.

Não existe na Constituição Federal e nem na Constituição Estadual qualquer norma permitindo o acesso imediato e irrestrito de parlamentares, individualmente considerados, a órgãos ou repartições públicas e o acesso irrestrito e imediato a todo e qualquer documento público e, menos ainda, a permissão para examinar e vistoriar individualmente os locais públicos como se fossem titular de poder de polícia, em nítida prerrogativa individual que contraria o “espírito da Constituição”.

(...)

Assim sendo, ao criar "prerrogativa individual", que excepciona a regra insculpida no art. 20 da Constituição Federal e no art. 7º da Constituição Estadual, a norma censurada é flagramente inconstitucional, tendo em vista o princípio da separação e harmonia dos Poderes."


Com todo respeito aos nobres colegas que atuam no órgão de representação jurídica da Prefeitura de Mangaratiba e subscreveram a peça inaugural da ação que pede a declaração de inconstitucionalidade da norma em comento, tenho um pensamento divergente. Pois, pelo que observei, a Procuradoria Geral do Município adotou um posicionamento conservador quanto à fiscalização do Legislativo sobre o Executivo enquanto entendo ser o livre ingresso nas repartições públicas, bem como o livre acesso a documentos, direitos implícitos da própria atividade parlamentar. Aliás, o próprio poder de requisitar informações ao poder Executivo é reconhecido também quanto ao cidadão que o exerce nos termos da LAI que é a Lei Federal n.º 12.527/2011, cujo artigo 10 caput assim dispõe:


"Art. 10. Qualquer interessado poderá apresentar pedido de acesso a informações aos órgãos e entidades referidos no art. 1º desta Lei, por qualquer meio legítimo, devendo o pedido conter a identificação do requerente e a especificação da informação requerida." (destaquei)


Ora, a questão aqui tratada não guardaria uma relação com a separação dos Poderes já que a norma atacada em momento algum tentou subordinar o Executivo ao Legislativo, mas, sim, positivar o direito que qualquer vereador tem de fiscalizar (num sentido genérico) a Administração Pública. Inclusive, confesso que nem gostei da limitação de comunicar previamente o órgão ou repartição com uma antecedência mínima de 24 (vinte e quatro) horas porque entendo que o acesso do vereador precisaria ser livre, exceto em situações justificáveis como naquelas em que há um sigilo legal em razão da privacidade, algum risco de vida, grave prejuízo à prestação de um serviço essencial, etc.


Logicamente que tudo deve ser feito com razoabilidade pois, em tese, não veria razões para um vereador ou deputado querer ingressar imediatamente numa UTI ou numa sala de cirurgia a ponto de surpreender sem uma razão justificada o trabalho dos médicos, a exemplo de como extrapolava o Gabriel Monteiro no Rio de Janeiro. No entanto, nada impede que a Comissão de Saúde da Câmara entre em contato com o hospital e formalize o seu pedido com antecedência, informando à direção que pretende exercer uma fiscalização num determinado setor restrito do nosocômio.


Todavia, não pretendo negar a instituição do princípio da colegialidade para determinadas decisões no âmbito do Legislativo e aí digo que o texto do inciso XXVIII do art. 49 da Lei Orgânica do Município de Mangaratiba foi correto em fazer menção também às comissões da Casa de Leis. E isto vai de encontro ao que diz o artigo 50 da Constituição da República, o qual foi citado na própria petição inicial da ação do prefeito:


"Art. 50. A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, ou qualquer de suas Comissões, poderão convocar Ministro de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República para prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando crime de responsabilidade a ausência sem justificação adequada. (Redação da ECR 2/1994)" - destaquei


No entanto, o princípio da colegialidade não pode afastar o vereador da sua condição de fiscal do Município. Isto porque a função de fiscalização é uma das principais atribuições desses agentes políticos eleitos pelo voto popular, permitindo que eles exerçam um controle sobre as ações do Poder Executivo e ajudando a garantir a transparência e a efetividade das políticas públicas em benefício da população.


Assim sendo, a realização de visitas e inspeções em obras públicas, escolas, postos de saúde, entre outros locais de interesse para a população, trata-se de uma forma legítima de fiscalização. Pois, por meio dessas visitas, o vereador pode verificar de perto a qualidade dos serviços prestados e as condições de atendimento à população, identificando possíveis problemas e buscando soluções para eles.


Finalmente, em que pese a citação pela Procuradoria do Município quanto ao julgamento em 05/04/2004 da ADI n.º 3.046-9, no STF, da relatoria do então Ministro Sepulvida Pertence, eis que, além da composição da Egrégia Corte não ser mais a mesma de dezenove anos atrás (e o contexto sócio-político do Brasil também não), deve-se fazer o distinguishing com relação ao caso de Mangaratiba. Logo, até mesmo por conta do diferença textual da Lei Paulista para o teor mais restrito da norma impugnada da Lei Orgânica de Mangaratiba, eis que o raciocínio jurídico do caso precedente não se aplicará ao atual, devido a fatos materialmente diferentes entre ambas as situações.


Desse modo, como o inciso XXVIII do artigo 49 da nossa LOM nem fala de "livre acesso" do vereador aos locais, mas, sim, sobre "exercer (...) a fiscalização sobre o funcionamento de quaisquer órgãos públicos ou repartições da esfera administrativa municipal", entendo que a norma atacada situa-se até fora da questão tratada na Lei n.º 10.869/2001 do Estado de São Paulo, objeto da ADI n.º 3.049.


Enfim, sei o quanto esse tema é profundo, envolve muito mais indagações jurídicas, sendo que não escondo o meu inconformismo com certas decisões limitadoras da fiscalização parlamentar já prolatadas pelo STF. Porém, acredito que tudo caminha no nosso Direito para uma ampliação do controle das Casas Legislativas sobre o Executivo de cada ente, por meio da fiscalização individual do vereador ou do deputado.


Quanto ao julgamento da representação por inconstitucionalidade proposta pelo prefeito de Mangaratiba, torço pela sua total improcedência e mantenho uma elevada dose de confiança de que a norma não poderá ser de todo suprimida. Aliás, nada impede o Tribunal de aplicar a sua técnica interpretativa de fiscalização da constitucionalidade sem haver uma redução de texto.


Vamos acompanhar!

2 comentários:

  1. Bravo! Excelente iniciativa cidadã. Tão valiosa quanto é ridícula a demanda do prefeito, prefeitura. Tanto sob o ponto de vista jurídico, absolutamente inconsistente, quanto sob o ponto de vista moral. Impressionante a que ponto chegamos. Parabéns e obrigado.

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    1. Obrigado pela leitura e comentários. Certamente esse processo será uma batalha jurídica pelo direito de fiscalização do Executivo e espero que o Judiciário seja sensibilizado. Também desejo que essas situações sirvam para mostrar à população que temos hoje um Executivo que não gosta de ser fiscalizado. Afinal, o que têm a esconder?!

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