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domingo, 27 de fevereiro de 2022

Uma representação da nossa impetuosidade



A imagem acima que ilustra esse texto refere-se ao quadro do artista russo Viktor Mikhailovich Vasnetsóv (1848 – 1926) denominado Os quatro Cavaleiros do Apocalipse (1887), os quais são os personagens descritos na terceira visão profética do livro bíblico de Revelação ou Apocalipse.


Arrebatado aos céus, após contemplar toda a estrutura da organização celestial de Deus, João vê em sua mão direita um rolo (manuscrito enrolado em formato cilíndrico) com sete selos (Apocalipse 5:1-2.). Em seguida Jesus Cristo (descrito como o "Leão da tribo de Judá", a "Raiz de Davi", e "um cordeiro em pé, como se tivesse sido morto") tira o rolo da mão direita daquele que está assentado sobre o trono (Apocalipse 5:5-9). Então, esses cavaleiros começam sua cavalgada por ocasião da abertura do primeiro desses "sete selos" e, a cada selo aberto, um cavaleiro aparece no total de quatro (Apocalipse 6:1-Apocalipse 7:17). 


"E, havendo o Cordeiro aberto um dos selos, olhei, e ouvi um dos quatro animais, que dizia como em voz de trovão: Vem, e vê.

E olhei, e eis um cavalo branco; e o que estava assentado sobre ele tinha um arco; e foi-lhe dada uma coroa, e saiu vitorioso, e para vencer.

E, havendo aberto o segundo selo, ouvi o segundo animal, dizendo: Vem, e vê.

E saiu outro cavalo, vermelho; e ao que estava assentado sobre ele foi dado que tirasse a paz da terra, e que se matassem uns aos outros; e foi-lhe dada uma grande espada.

E, havendo aberto o terceiro selo, ouvi dizer o terceiro animal: Vem, e vê. E olhei, e eis um cavalo preto e o que sobre ele estava assentado tinha uma balança em sua mão.

E ouvi uma voz no meio dos quatro animais, que dizia: Uma medida de trigo por um dinheiro, e três medidas de cevada por um dinheiro; e não danifiques o azeite e o vinho.

E, havendo aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vem, e vê.

E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia; e foi-lhes dado poder para matar a quarta parte da terra, com espada, e com fome, e com peste, e com as feras da terra."

(Apocalipse 6:1-8)


Como se sabe, o número quatro na simbologia numérica bíblica representa quadrangulação em simetria, universalidade ou totalidade simétrica, como em quatro cantos da Terra, quatro ventos. Vemos isso também em outros textos (Apocalipse 4:6; Apocalipse 7:1-2; Apocalipse 9:14; Apocalipse 20:8; Apocalipse 21:16), provavelmente tornando esses quatro Cavaleiros parte de um único evento relacionado.


Além disso, em muitas culturas, o cavalo é símbolo da impetuosidade e da impulsividade relacionadas com os desejos humanos, além de ser associado com água e fogo por serem muitas vezes incontroláveis. Também é tido como a relação com o divino servindo de guia de almas, sendo muitas vezes enterrados juntamente com seus donos. Exprime ainda vigor e virilidade, por vezes simbolizando a juventude. E, no contexto histórico, principalmente nos campos de batalha, o cavalo era treinado muitas vezes para matar soldados com suas patas ou sua boca de maneira que, nessa narrativa, esses cavalos e seus cavaleiros podem representar (e muitas interpretações os descrevem assim) uma cavalgada (campanha) com toques de guerra trazendo suas consequências por onde passam.


Quanto às cores dos cavalos, elas dizem muito dos respectivos cavaleiros como:


- Branco: Pureza, santidade, régio;

- Vermelho: Sangue, assassinato, guerra;

- Preto: Obscuridade, peste, maldição;

- Amarelo: Corpo em decomposição, morte.


Já os seus apetrechos mostram característica a respeito do papel que desempenham ou a consequência de sua cavalgada:


- Arco e coroa: Símbolo da guerra e do poder;

- Espada: Principal arma dos exércitos antigos, usada como símbolo de assassinato;

- Balança: No contexto denota desigualdade ou injustiça (no caso de alimento);

- Jarra: Traz a peste dentro.


Outro detalhe é a ordem em que são chamados, significando para muitos uma sucessão progressiva. Isto porque eles não são chamados ao mesmo tempo.


Pois bem. Muitos que alimentam uma escatologia do medo já andam dizendo por aí que, com a guerra na Ucrânia, o segundo selo teria sido aberto, com o argumento de que o primeiro teria sido a pandemia da Covid-19...


Sinceramente, não concordo em nada com essa visão baseada em fatos do momento e revelando um oportunismo de ocasião. Pois, além de não seguir a tal ordem (critério fundamental para os que se apegam a uma tosca literalidade), tais "intérpretes" se esquecem de que a visão do autor do Apocalipse representa uma constante na história da nossa espécie.


Indiscutível que a humanidade sempre conviveu com seus impetuosos conflitos que, por sua vez, causam guerras, trazem fome e morte. Porém, isso é algo que pode e deve ser entendido como transitório diante de um prometido futuro glorioso que o Apocalipse identifica como a vida dos justos ressurretos na "Nova Jerusalém".


Como para mim é o simbolismo da visão que deve nortear o intérprete do Texto Sagrado, vejo justamente que a proposta do livro recai sobre o nosso esforço de superação desses nossos trágicos momentos até que alcancemos os "novo céu" e "nova terra".


Não acredito num deus que vai destruir a sua própria criação. Porém, a vocação da humanidade é progredir para alcançar um estágio superior de relacionamentos, quando saberemos lidar melhor com os nossos desejos, evitando que, ao tentar satisfazê-los, sejamos conduzidos por essa impetuosidade destrutiva que tanto nos assola.


Ótimo domingo a todos e todas!

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