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terça-feira, 24 de setembro de 2013

O engano de nos considerarmos suficientemente justos


"Propôs também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos, por se considerarem justos, e desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo com o propósito de orar: um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, posto em pé, orava de si para si mesmo, desta forma: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como este publicano; jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho. O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, sê propício a mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque todo o que se exalta será humilhado; mas o que se humilha será exaltado." (Evangelho de Lucas, capítulo 18, versículos de 9 a 14; versão e tradução ARA)

Não dá para ler esta incrível parábola, conhecida como a do fariseu e do publicano, sem questionarmos a nossa realidade religiosa atual. Principalmente praticando uma auto-análise da espiritualidade que cultivamos diante do Deus que nos sonda interiormente e nos conhece bem.

O fariseu e o publicano eram dois tipos sociais da época de Jesus. O primeiro formava um rigoroso partido religioso entre os judeus com normas de conduta capazes de distingui-los dentro da sociedade israelita em relação aos demais homens. Já o publicano compunha uma categoria profissional de coletores de tributos estatais, o que era um trabalho tido como indigno. Fosse porque muitos deles roubassem ou pelo simples fato de arrecadarem o imposto para o dominador estrangeiro. No contexto literário dos evangelhos, como temos estudado sequencialmente neste blogue entre uma e outra postagem diferente, o moralismo dos fariseus foi duramente criticado pelo Mestre a ponto de conduzi-los a uma condição contraditoriamente de impenitência, apesar de religiosos.

Esta não é a primeira vez que estou escrevendo na internet sobre essa metáfora. Para evitar repetir informações históricas e teológicas em demasia, sugiro aos interessados que leiam depois o artigo "Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador!", de 31/05/2010, e consultem outros textos pertinentes a este estudo em passagens anteriores do 3º Evangelho pois pretendo ir direto ao que hoje estou sentindo. Desejo compartilhar algo da própria experiência.

Durante a minha caminhada espiritual, posso dizer que já me senti um pouco de cada um desses dois personagens que subiram ao Templo afim de orar. A religião proporciona-me muitos dias de fariseu enquanto que as minhas quedas oportunizam os momentos de publicano arrependido. Não que o pecado em si seja bom, mas sim porque ele me esvazia do equivocado sentimento de auto-justificação. Faz com que eu me veja novamente numa estaca zero e recupere a consciência da aniquilação dos méritos supostamente acumulados, indo em busca de uma nova conversão (ou da retomada do contínuo processo de arrependimento/mudança).

Nessas raras horas de auto-humilhação sincera, sinto que o diálogo com Deus alcança uma excelente fluidez, muito melhor do que quando prossigo ajustado ao padrão medíocre de santidade que minha mente ainda bem religiosa tenta estabelecer. E digo ser algo medíocre porque perante perante o Altíssimo creio que nada do que fazemos torne-se suficiente para sermos meritoriamente aceitos/amados. Só que, quando viramos crentes espirituais, melhorando um pouquinho a nossa conduta em relação ao que éramos antes (e quanto aos demais desinteressados pela vida devocional ou fora dos nossos padrões), corremos o sério risco de entrarmos num engano bem pior: o de nos considerarmos justos, santos, moralmente superiores, quase perfeitos, gente de melhor qualidade, etc.

Embora o dízimo tenha sido uma atitude de fidelidade bíblica, acho interessante constatarmos que o jejum era um ato de auto-humilhação e de reconhecimento dos erros. Nas Escrituras Sagradas, quando a nação israelita arrependia-se dos pecados ouvindo a voz dos seus profetas, o povo jejuava. Durante a celebração anual do Yom Kippur ("dia do perdão"), era uma observância obrigatória para os judeus, segundo a Lei de Moisés. E, no livro de Jonas, tal foi a atitude dos ninivitas quando souberam que Deus pretendia destruir a cidade deles (Jn 3:5). Só que, na época de Jesus, havia religiosos fazendo aquilo repetidas vezes e despidos interiormente da essência do ato. Quando João tinhas lhes oferecido o batismo de arrependimento nas águas do Jordão, os fariseus recusaram:

"mas os fariseus e os intérpretes da Lei rejeitaram, quanto a si mesmos, o desígnio de Deus, não tendo sido batizados por ele." (Lc 7:30)

Não podemos cometer o erro de pensar que a parábola restringiu-se aos fariseus somente. Seria um engano e soaria até hipócrita fazermos dela uma crítica anti-judaica. Numa leitura contextual, observamos que, desde o verso 22 do capítulo 17 de Lucas, Jesus estava conversando particularmente com os seus seguidores após os fariseus terem-no consultado acerca da vinda do Reino de Deus (17:21). Assim, apesar do que diz o versículo nono do capítulo 18, entendo que o Senhor estivesse tratando com as pessoas de seu grupo de seguidores que formariam a futura Igreja. O Mestre parecia prever que, após sua morte, os discípulos poderiam cometer erros semelhantes aos do fariseus, coisa que ele tanto combatia. E, assim, fico me perguntando se, de fato, não foi isso o que realmente aconteceu na história eclesiástica e ainda se repete no nosso próprio comportamento?

Precisamos agir sempre como este publicano da parábola, quer tenhamos cometido algum tropeço recente ou não. Mesmo aqueles que nunca praticaram aqueles erros mais reprovados no meio religioso, devem passar pelo caminho da auto-humilhação cientes de que não se tornarão melhores do que ninguém por nada que fizerem ou deixarem de fazer. E, dessa maneira, creio que estaremos realmente buscando uma aproximação com o nosso Criador.

Que Deus tenha misericórdia de nós todos! Tenha misericórdia de mim porque sou pecador. Porque sou capaz de errar nas mesmas coisas e, pior ainda, anestesiar-me como um religioso e procurar refúgio nas aparências. Sei que mereço a condenação e não a aprovação, mas é por sua graça que vivo. Permita, ó Senhor, que eu retome o processo de conversão como no instante quando recebi a Jesus, ajudando-me a prosseguir conscientemente da minha condição sem precisar novamente cair para acordar.

Um ótimo dia para todos!


OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro O fariseu e o publicano do artista francês James Tissot (1836-1902). Teria sido pintado entre 1886 e 1894 e se encontra atualmente no Museu do Brooklyn, na cidade de Nova York. Extraí do acervo virtual da Wikipédia em http://fr.wikipedia.org/wiki/Parabole_du_pharisien_et_du_publicain

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