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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A recompensa do servo

"Qual de vós, tendo um servo ocupado na lavoura ou em guardar o gado, lhe dirá quando ele voltar do campo: Vem já e põe-te à mesa? E que, antes, não lhe diga: Prepara-me a ceia, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois comerás tu e beberás? Porventura, terá de agradecer ao servo porque este fez o que lhe havia ordenado? Assim também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer." (Evangelho de Lucas, capítulo 17, versículos de 7 a 10; versão e tradução ARA)

Um dos mestres judeus contemporâneos de Jesus, o rabi Yochanã ben Zakai (c. de 30-90 d.C), teria dito certa vez que o fato do homem cumprir a Lei de Deus não lhe daria direito a reclamar um reconhecimento meritório pois seria o ser dever/função a observância dos mandamentos da Torá (mAb 2,8). E, a meu ver, o sentido da parábola que trata da recompensa do servo, tem muito a ver com essa ideia do tanaíta muito embora o nosso Senhor tenha proferido-a talvez para desenvolver melhor o tema do perdão (versos 5-6), como foi tratado no penúltimo estudo bíblico.

Seja como for, creio que a metáfora tenha ampla aplicação em nossas vidas. Compreendo que não devemos esperar de Deus que nos aceite por causa das obras feitas, pois o sentimento do Criador pelo homem é gratuito. O Pai Celestial aceita a cada um independentemente daquilo que fazemos ou deixamos de fazer. Seu coração se alegra com as boas ações, mas jamais o amor do Eterno estará condicionado a elas. Como na parábola do filho pródigo (Lc 15:11-32), o descendente mais novo não deixou de ser recebido novamente na casa paterna quando decidiu voltar arrependido.

Igualmente, não podemos esperar ser recompensados também pelo perdão dado a alguém que nos feriu. Jamais tal atitude deve ser vista como uma moeda de troca para alcançarmos bênçãos terrenas ou celestiais. O nosso status continua sendo sempre o de servo!

Para muitos essas ideias parecem injustas e a parábola afronta até os direitos trabalhistas de hoje garantidos pela nossa CLT bem como pelas constituições dos países democráticos. Afinal, depois de um dia desgastante de labor no campo, o servo só tem o direito de comer depois que prepara a ceia para o seu senhor e o serve. Somente quando o patrão termina a sua refeição é que o empregado para pra se alimentar. E isto sem receber nenhum agradecimento pelo cumprimento das pesadas tarefas...

É certo que o Mestre não estaria justificando a injusta exploração do trabalho humano em seus dias. Ele apenas fez daquela situação vil uma metáfora para que entendêssemos a prática do bem e do perdão como ações integrantes do nosso sentido existencial. Jamais para sermos especificamente recompensados. Aliás, a guarda dos mandamentos e a atitude de perdão foram prescritas na Lei de Deus para o nosso próprio bem.

Penso que aí esteja a grande diferença quando realizamos as boas obras debaixo da concepção da gratuidade da vida. Passamos a encarar o serviço como algo até prazeroso. Uma maneira de expressarmos o amor por Deus e pelas pessoas. Seria a oportunidade de compartilharmos inclusivamente aquilo que recebemos sem medida do nosso generoso Pai Celestial. E aí, se somos perdoados de maneira incrível, por que ainda haveremos de reter o perdão em relação ao nosso irmão?!

A ideia de nos considerarmos "servos inúteis" (verso 10) em nada tem a ver com o rebaixamento da auto-estima do cristão. Muito pelo contrário! Trata-se antes de por as coisas no seu devido lugar, não confundindo as boas obras e a liberação do perdão como instrumentos de barganhas para alcançarmos o amor imensurável do Pai.

Tal ensino de Jesus é inegavelmente importante para o discipulado de todas as eras e acho que isso pode ser levado também para o nosso relacionamento com o outro em casa, no trabalho e na comunidade. Quantas vezes não ficamos esperando por uma atitude de reconhecimento das pessoas quanto a um benefício que fizemos a elas? Pois, enquanto a caridade por nós praticada permanecer legalista e não se tornar graciosa, corre-se o risco de fazer da ajuda ao próximo uma troca perversa. E aí, por causa das expectativas de retribuição, invalidamos a boa ação a ponto da relação deixar de ser espiritualmente terapêutica para virar até doentia.

Meus amados, vejo que esta questão certamente não está dissociada do episódio seguinte sobre a cura dos dez leprosos (Lc 17:11-19) em que somente um deles voltou para agradecer (v. 15). É o que pretendo ainda compartilhar aqui na postagem seguinte em que o milagre pode ser lido também dentro da ótica do discípulo como operador das boas obras. Aguardem o próximo estudo! Para finalizar, deixo aqui as palavras de oração ditas em certa ocasião pelo virtuoso Tomás de Aquino (1225-1274), um dos maiores teólogos medievais, as quais refletem um bom entendimento da parábola em comento:

"Eu te agradeço, ó Senhor, Todo-Poderoso Pai, Eterno Deus, que considerou por bem, não por meus méritos, mas pela condescendência de sua bondade, satisfazer-me como pecador, este seu servo inútil."

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