"Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro igualmente, os males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos. E, além de tudo, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que querem passar daqui para vós outros não podem, nem os de lá passar para nós." (Evangelho de Lucas, capítulo 16, versículos 25 e 26; versão ARA)
A parábola do rico e do mendigo (Lc 16:19-31) nem sempre parece ser corretamente interpretada conforme o contexto literário no qual foi escrita. Muitos pregadores fazem dessa passagem bíblica uma verdadeira sessão terror criando a partir de uma metáfora equivocadas doutrinas sobre céu e inferno. Ignoram eles que Jesus apenas teria se utilizado de uma representação popularmente propagandeada em seu tempo. Algo que, possivelmente, fosse usado pelos fariseus para expressarem a recompensa por um bom comportamento terreno do homem piedoso após a morte no encontro com os ancestrais judeus.
Por outro lado, observo que muitos fizeram dessa historieta um indevido consolo conformista para o pobre anestesiar-se de seus sofrimentos provocados pelos ricos. Em diversas épocas, a Igreja, sendo ela mesma a causa das desigualdades sociais, adotou um discurso imobilista afim de que as massas de trabalhadores explorados encontrassem algum contentamento com uma possível condição futura melhor do que o presente. Para tanto, bastaria ao homem ser obediente e dócil ao sacerdote e ao seu senhor. Se o patrão comete injustiças, o pobre não precisava ficar revoltado porque tormentos estariam reservados para o ímpio no além túmulo.
Acontece que o Reino de Deus não é isso! A verdadeira Igreja jamais pode omitir-se deixando de tomar decisões éticas e políticas para combater a pobreza. Fingir estar ao lado dos desfavorecidos e reprimindo as iniciativas revolucionárias dos excluídos, significa contribuir para perpetuar uma perversa condição de desigualdade no ambiente social. E, lamentavelmente, este tem sido o papel do cristianismo dominante por muitos séculos. Aqui mesmo no Brasil, houve padres católicos e pastores evangélicos que praticam um anti-reino ao se aliarem às elites na repressão do trabalhador e muitos ainda estão ao lado do poder. Estes são os lobos que fazem da religião um instrumento de dominação das massas, retirando do oprimido as oportunidades e escolhas mais básicas para o seu desenvolvimento livre.
Entretanto, para bem entendermos a mensagem de Jesus, devemos mergulhar no contexto literário do 3º Evangelho como já foi dito. O tema do décimo sexto capítulo trata da questão das riquezas e, no versículo 14, o autor sagrado diz que os fariseus seriam "avarentos". Assim, algo me diz que, ao contar essa parábola, o Mestre estava também criticando os religiosos de sua época, os quais separavam-se do mundo pelo moralismo excludente que praticavam.
Conforme analisado no estudo bíblico anterior, os fariseus não foram necessariamente pessoas ricas como os sacerdotes do Templo. Eles teriam sido representantes de uma classe média. Porém, faziam da reputação moral um ídolo ao qual se apegavam e pretendiam justificar-se pelas obras feitas (verso 15). Logo, eles seriam também uma espécie de avarentos da moral.
Não quero afirmar com isto que o comentado ensino de Jesus tenha se restringido aos fariseus ou aos religiosos apenas. Vejo na parábola uma dimensão até bem ampla pois ela abrange as escolhas de vida dos ricos e nos permitem construir uma teologia libertadora num discurso voltado para o social. Inclusive porque nosso Senhor teria reprovado o apego aos bens materiais. Sua instrução foi que as pessoas distribuíssem as riquezas e não se preocupassem em acumulá-las (Lc 12:33; 16:9; 18:22). Tanto é que ele se recusou a julgar a controvérsia sobre a repartição da herança (12:13-14), algo que estava completamente fora daquilo que o Reino de Deus propõe (ler artigo "A vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui").
O que muito me chamou a atenção na parábola foi a separação entre o rico e o mendigo Lázaro. Tratava-se de uma realidade que já era pré-existente desde quando os dois estavam ainda na Terra. Embora o pedinte vivesse à porta daquele homem opulento, a sua presença ali era ignorada. Talvez até indesejada. E, neste sentido, quero citar aqui os comentários do teólogo namibiano Dr. Paul John Isaak, da Igreja Luterana:
"O pecado do homem rico é que ele não tinha coração. Olhava para um homem que tinha nome, mas não lhe perguntava o nome. Via a fome e a dor de Lázaro, mas não fazia nada a respeito. Aceitava a pobreza de Lázaro como parte da ordem natural das coisas e achava perfeitamente normal e inevitável que Lázaro permanecesse com fome, dor, sofrimento, doença e, finalmente, morte enquanto chafurdava no luxo. Não existe ninguém tão cego quanto aquele que não deseja ver. Após sua morte, o homem rico recebeu a punição devida àquele que não pratica ubuntu nem reconhecera que Lázaro era um ser humano semelhante a ele (16:23). Ele não reconhecera Lázaro como irmão e companheiro. Apreciando sua riqueza e saboreando a inveja que ela causava aos outros, ele não se deu conta, até que fosse muito tarde, de que a vida caracterizada pelo individualismo e pela recusa em partilhar o pão com o próximo é detestável aos olhos de Deus" (Comentário Bíblico Africano, editora Mundo Cristão, 2010, pág. 1267)
Assim, na perspectiva do Reino, opera-se uma formidável inversão de valores, mas o abismo entre o rico e o Lázaro continua. Se aquele banqueteava-se com egoísmo em sua mansão (versículo 19), há uma mesa bem farta preparada por Abraão no além para o indigente. A própria imagem de "seio" (v. 22) significa que Lázaro era convidado de honra naquela festa. Quanto às chagas do mendigo (v. 20), estas vão corresponder aos tormentos do rico no Hades, o "lugar dos mortos" em grego que, em muitas traduções, consta convenientemente como sendo o "inferno" (v. 23). E, diferentemente do rico, às vezes chamado de "Dives" em algumas versões bíblicas, eis que, na parábola, o que fora pobre nunca deixou de ter nome e o reconhecimento de sua dignidade humana por Jesus.
Na conversa com Abraão (vv. 24-31), observamos que a consciência do rico, mesmo no além, permanece cavando o abismo da separação social. Sua alma era incapaz de arrepender-se e ele continua pensando arrogantemente em benefício próprio. Supõe que pode mandar Lázaro cumprir uma ordem dele para aliviar seu sofrimento. Como não é possível haver o contato entre os dois, coisa que na Terra o rico deveria até rejeitar, o homem passa então a preocupar-se com o bem estar de seus familiares (vv. 27-28). E ainda assim sua inquietação permanece egoísta, sendo restrita aos que são do próprio sangue.
À réplica do rico, respondeu Abraão que os irmãos dele já tinham o testemunho de Moisés e dos Profetas (v. 29), isto é, as Escrituras Sagradas do Antigo Testamento que os fariseus já conheciam. Seria inútil que Lázaro ressuscitasse dentre os mortos para que se arrependessem. Se ignoravam a mensagem bíblica, que é bem clara quanto à obrigação de cuidado para com os pobres, não se deixariam convencer caso o mendigo fosse estar com eles.
Certamente que o autor sagrado estava referindo-se de algum modo à descrença dos mestres judeus de seu tempo quanto à ressurreição de Cristo pregada pela Igreja. Aí será preciso levarmos em conta o contexto histórico do leitor original que necessitava de uma explicação para o fato dos fariseus não terem seguido a Jesus, como também ter as esperanças alimentadas para prosseguir em sua caminhada espiritual, considerando que muitos cristãos primitivos deveriam passar por necessidades. Os membros das comunidades eclesiásticas dos primeiros séculos dependiam de um bom ânimo afim de revolucionarem a dura realidade na qual viviam, mesmo que não viessem a presenciar as desejadas transformações históricas.
Para os fariseus que não eram lá tão ricos como o personagem sem nome da parábola, o abismo poderia ser representação da separação construída pelos religiosos quanto aos demais homens. De acordo com o Evangelho, eles eram incapazes de conviver com publicanos e meretrizes. O grande conhecimento bíblico que possuíam não era aplicado para buscar uma aproximação com as demais pessoas. Fechavam-se em suas congregações de santos enquanto muitos pecadores necessitavam de acolhimento. Desperdiçavam, assim, a oportunidade de usarem a Bíblia para transmitirem boas novas de perdão, de inclusão social e de restauração.
Há quem diga que Jesus teria proferido a parábola referindo-se aos saduceus. Os "cinco irmãos na casa do meu pai" (v. 28) corresponderiam aos cinco irmãos de Caifás, na casa de Anás, conforme documentado pelo historiador Flávio Josefo. Ou seja, segundo este entendimento, o sumo sacerdote e seus filhos não se arrependeriam mesmo depois da notícia da ressurreição do Senhor.
Mas o que dizer de nós, cristãos que temos não só Moisés e os Profetas como também o testemunho de Jesus na nossa tradição apostólica? O que a Igreja tem feito para transformar a realidade social do planeta?
Até quando vamos preferir nos fechar dentro das nossas congregações, preferindo o distanciamento do mundo nos retiros de Carnaval, enquanto que, nesses dias de pura ilusão, há vidas se afundando nas drogas e na embriaguez precisando do nosso apoio?
Será que vamos ficar dizimando para a edificação de templos enquanto há membros nas nossas próprias igrejas e em outros lugares do mundo passando por necessidades?
Sem dúvida que a parábola do rico e do Lázaro continua sendo atual e aplicável para a nossa triste situação eclesiástica. Se o pastor Martin Luther King Jr. (1929-1968) ressuscitasse dentre os mortos e advertisse a Igreja sobre os excessos em seus shows gospel e a falta de caridade nos dias atuais, será que os líderes eclesiásticos deixariam se persuadir? Ou logo não duvidariam do sonho ou da visão que tiveram voltando-se às velhas práticas rotineiras dentro de seus templos numa conformação com o atual sistema?
Mais do que nunca é preciso por fim a esse abismo enquanto estamos aqui. A Igreja precisa ser capaz de contribuir melhor para a inclusão social do pobre, do viciado, da prostituta, do homossexual, do portador de necessidades especiais e de todo e qualquer necessitado. Não podemos permitir que nem a moral religiosa ou os compromissos de nossas agendas atrapalhem! Se preciso for e houver condições pessoais de dar esse tipo de apoio, um ministro do Evangelho deve entrar até num boteco e ouvir o drama de um dependente alcoólico!
Lembro que, enquanto eu morava na cidade serrana de Nova Friburgo (RJ), uma senhora que é deficiente visual contou-me que, quando sua congregação começou, ainda sem CNPJ e sem sede, reunindo-se na sala de aula de um colégio, havia quem se importasse com sua condição e a conduzisse até as reuniões. Depois que o grupo cresceu e se tornou uma denominação local expressiva, ela começou a ficar esquecida. Ir à igreja tornava-se uma tarefa difícil por causa dos obstáculos das ruas e faltavam irmãos que se oferecessem para pegá-la em casa. Só que, como eu bem me recordo, o próprio templo onde eles se reuniam tinha escadas da portaria até o auditório, o que constitui uma barreira para a locomoção das pessoas portadoras de necessidades especiais. Um cadeirante tinha que ser carregado e as obras feitas no local, desde que a casa fora adquirida, jamais tinham previsto uma adaptação do prédio.
Verdade seja dita que precisamos aplicar melhor as finanças em projetos de combate à pobreza. Chega de edificar templos suntuosos e termos pastores dirigindo seus carrões enquanto ainda há gente no mundo carecendo da nossa ajuda material. Está na hora da Igreja retornar às raízes do Evangelho e fazer a revolução do Reino acontecer nos dias atuais.
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