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quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Um reino que vem sem aparência visível


"Interrogado pelos fariseus sobre quando viria o reino de Deus, Jesus lhes respondeu: Não vem o reino de Deus com visível aparência. Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está! Porque o reino de Deus está dentro de vós [ou entre vós/no meio de vós]" (Evangelho de Lucas, capítulo 17, versículos 20 e 21; versão e tradução ARA)

Esta é uma das partes do Evangelho que causa algumas divergências entre os tradutores da Bíblia sobre qual o sentido adequado da expressão grega entós. Se deve ser entendida como "dentro de vós" ou "entre vós", o que para mim não gera problemas porque prefiro optar por uma exegese ampla que aceite mais de uma significação ao mesmo tempo.

Deve-se considerar que a presença do Reino de Deus seria algo oculto/escondido, mas que aguarda uma plenificação futura. Foi o que o Mestre ensinou ao contar as parábolas do grão de mostarda (Lc 13:18-19) e do fermento (13:20-21), conforme vimos no artigo Um começo bem pequenininho. Trata-se, assim, de uma realidade que, em certo sentido, está aqui mas também virá.

Sem dúvida que o Reino de Deus não se confunde com nenhum governo humano ou país. Não é o Estado de Israel e nem o Vaticano. Tão pouco podemos fazê-lo se representar por alguma instituição religiosa. A Igreja de algum modo teria como tarefa torná-lo visível até certo ponto através das nossas condutas amorosas, dos trabalhos sociais, na vida em comunidade, pela integridade das ações praticadas, as obras de justiça, de restauração e de paz. Só que, ainda assim, as raízes desse Reino estariam plantadas em Deus sendo sua origem totalmente de natureza espiritual ainda que buscando assumir o comando/influência sobre o mundo físico por meio de nós pelas escolhas positivas que são tomadas.

Alguns questionam que a tradução "dentro de vós" esteja equivocada porque, nos versos 20 e 21, o Mestre não estaria se dirigindo aos seus seguidores e sim aos fariseus, os quais, no contexto literário do evangelista, seriam religiosos impenitentes. Porém, não se pode descartar o entendimento de que a realidade do Reino se ache ainda como uma chama encapsulada em muitas pessoas fechadas dentro delas mesmas. E, sendo assim, estamos falando de uma presença existente no coração de todos os homens.

Estar "entre vós", ou "no meio de vós", apontaria para a presença do Reino no movimento do Espírito Santo manifesto no ministério de Jesus. Algo que os fariseus não estavam compreendendo, ou querendo aceitar, visto que tinham acusado o Senhor de expulsar demônios por Belzebu quando um homem mudo ficou curado e ainda esperavam por um sinal (conf. Lc 11:14-23), como analisado no texto Afinal, estamos contra ou a favor do Reino?, escrito em 12/08.

Só que nenhum sinal seria dado senão o do profeta Jonas (Lc 12:39), o que torna a vinda do Reino de certa maneira inobservável. É o que podemos verificar pela leitura paralela e comparativa da sentença n.º 113 do Evangelho de Tomé:

"Seus discípulos disseram a ele: Quando virá o Reino? Disse Jesus: Ele não virá porque é esperado. Não é uma questão de dizer: Eis que está aqui! Ou: Eis que está ali! Na verdade, o Reino do Pai está espalhado pela terra e os homens não o vêem."

Sem dúvida que os ditos de Jesus encontrados em Lucas e em Tomé abrem portas para uma possível interpretação não escatológica sobre o Reino de Deus. Porém, o diálogo que se segue entre o Senhor e os seus seguidores (vv. 22-37) não exclui uma interpretação visando os últimos dias. Isto é, a desejada segunda vinda de Cristo. Um acontecimento crido como repentino e imprevisível pela Igreja primitiva, motivo pelo qual os discípulos (nós) precisariam manter uma vigilância permanente.

Não afirmaria que tal noção sobre a volta de Jesus seja equivocada, mas, sim, mal compreendida. Principalmente quando se busca interpretá-la de maneira totalmente literal e enquadrada nas doutrinas eclesiásticas apocalípticas. Pra mim, o retorno do Senhor representa a tão sonhada plenificação do Reino da qual nos aproximamos cada vez mais não podendo ser confundido com um messianismo barato e enganador. A este respeito, o Mestre bem teria prevenido os seus discípulos para não se deixarem seduzir indo atrás dos falsos líderes que surgiriam (v. 23), pois o Ungido não estaria nem aqui e nem ali. Aquilo que podemos chamar de segundo advento de Cristo (a parousia do Evangelho de Mateus)  será algo público e notório (v. 24). Uma realidade que se mostrará inconfundível marcando definitivamente o fim da era atual. Será como o raio que, embora não possamos localizar, ilumina o céu do nascente ao poente. Só que, antes de se manifestar em glória, o Filho do Homem ainda teria que padecer e ser rejeitado (v. 25), algo que se relaciona com a nossa luta revolucionária por um mundo de justiça conforme a pregação do Evangelho.

Ora, o Reino de Deus não é mágica! É algo que construímos com trabalho, persistência, amor, lágrimas, orações, atitudes de perdão, contrariando corajosamente fortes interesses e até mesmo sofrendo as perseguições. Vivendo numa época bem pior do que a nossa, homens foram presos, torturados e mortos pelo testemunho de Jesus. Seguindo os passos do Mestre, os discípulos não estiveram brincando de religião como se fossem criar mais uma seita no planeta. O movimento dos apóstolos mexeu profundamente com as estruturas econômicas, políticas e sociais do antigo Império Romano!

Apesar de toda essa fase de luta e de sofrimento da Igreja, a mudança nos tempos finais é certa. Jesus, então, faz uma prefiguração da vinda do Filho do Homem pelo término das eras de Noé e de Ló citados aqui como homens modelos no meio de gerações perversas:

"Assim como foi nos dias de Noé, será também nos dias do Filho do Homem: comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e veio o dilúvio e destruiu a todos. O mesmo aconteceu nos dias de Ló: comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam e edificavam; mas, no dia em que Ló saiu de Sodoma, choveu do céu fogo e enxofre e destruiu a todos. Assim será no dia em que o Filho do Homem se manifestar. Naquele dia, quem estiver no eirado e tiver os seus bens em casa não desça para tirá-los; e de igual modo quem estiver no campo não volte para trás. Lembrai-vos da mulher de Ló. Quem quiser preservar a sua vida perdê-la-á; e quem a perder de fato a salvará. Digo-vos que, naquela noite, dois estarão numa cama; um será tomado, e deixado o outro; duas mulheres estarão juntas moendo; uma será tomada, e deixada a outra. [Dois estarão no campo; um será tomado, e o outro, deixado.] Então lhes perguntaram: Onde será isso, Senhor? Respondeu-lhes: Onde estiver o corpo, aí se ajuntarão também os abutres." (17:26-37)

Todavia, a advertência não serve somente para o mundo! A referência à mulher de Ló (v. 32) que, segundo Gênesis 19:26, olhou para trás e virou uma estátua de sal, vem dizer aos ministros do Evangelho desses últimos dias sobre o dever de fixarmos a nossa visão no Reino de Deus e não nos bens deste mundo. E, pelo que se vê flagrantemente, há muitos pregadores por aí deixando de anunciar as boas novas e adotando o discurso da teologia da prosperidade. Deste modo, esses falsos pastores têm feito com que o coração das pessoas se apegue às posses materiais numa hora errada. Observem que, no verso 33, Jesus repete o ensino já estudado em Lc 9:24 sobre ganhar/perder a vida (ler o artigo O discípulo e a cruz). Seria uma formidável inversão de valores que caracterizará o fim dos tempos.

No versículo 37, Jesus responde aos discípulos com um provérbio popular de sua época. Se o mal odor causado pela putrefação de um cadáver atrai os urubus, também os que perderão a vida por tentarem ganhá-la (nos valores mundanos/materialistas) estarão trazendo juízo para si mesmos. Outrossim, podemos entender que o Mestre estivesse falado aí de sua morte como um sinal que, ao mesmo tempo, seria incompreensível. O Filho do Homem sofreria rejeição pelos sacerdotes do Templo e será ali, na fraqueza da cruz, que ocorrerá a sua revelação. É o que leciona o teólogo italiano Sandro Gallazzi:

"(...) o filho do homem se revelará plenamente no Jesus de Nazaré crucificado, no homem condenado à morte pelos chefes do templo e executado pelos chefes do império. Podemos exercitar a nossa capacidade interpretativa para explicar quem seriam as águias (ou os abutres, como em Jó 39,28-30?) que irão se reunir ao redor do cadáver (...) A liberdade de interpretar um provérbio é, sempre, muito grande e variada. Trata-se do 'sinal de Jonas' (Mt 12,39-41; 16,4). É a presença de um corpo que deveria estar morto, mas que vive. É a parousia, o instante em que a história e escatologia se encontram: 'imediatamente'..., 'naquele momento'. O que deveria ser sinal de morte, ponto final, irreversível, não passa de um momento de aflição que abre as portas à vinda gloriosa do filho do homem, com seu cortejo de anjos." (O Evangelho de Mateus - uma leitura a partir dos pequeninos. Comentário Bíblico Latinoamericano. São Paulo: Fonte Editorial, 2012, pág. 489)

Ter essa esperança escatológica não seria incompatível com nossas ações construtivas no presente. A crença na plenificação do Reino, no tempo certo de Deus, deve nos motivar e nutrir o desejo de promoção das mudanças sociais necessárias, ajudando pessoas pelas mais diversas maneiras no nosso caminhar. Trata-se de um ânimo para cumprirmos fielmente com a nossa parte sabendo que a vitória do Senhor é certa. Maranata!


OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro Crucificação de Cristo do artista germânico Albrecht Altdorfer (1480-1538). Encontra-se no Gemãldegalerie, importante museu de arte de Berlim, Alemanha, e a imagem foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Albrecht_Altdorfer_016.jpg

Um comentário:

  1. Caro amigo,

    Como o objetivo do artigo foi estudar o texto bíblico e não todo o assunto, fixei-me na passagem em comento.

    Abraços.

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