"Naquela mesma hora, os escribas e os principais sacerdotes procuravam lançar-lhe as mãos, pois perceberam que, em referência a eles, dissera esta parábola; mas temiam o povo. Observando-o, subornaram emissários que se fingiam de justos para verem se o apanhavam em alguma palavra, afim de entregá-lo à jurisdição do governador. Então, o consultaram, dizendo: Mestre, sabemos que falas e ensinas retamente e não te deixas levar de respeitos humanos, porém ensinas o caminho de Deus segundo a verdade; é lícito pagar tributos a César ou não? Mas Jesus, percebendo-lhes o ardil, respondeu: [Por que me tentais?] Mostrai-me um denário. De quem é a efígie e a inscrição? Prontamente disseram: De César. Então, lhes recomendou Jesus: Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Não puderam apanhá-lo em palavra alguma diante do povo; e, admirados de sua resposta, calaram-se." (Evangelho de Lucas, capítulo 20, versículos de 19 a 26; versão e tradução ARA)
Como vimos no estudo bíblico anterior, Jesus havia proferido a parábola dos lavradores maus através da qual denunciou claramente os líderes religiosos de sua época. Antes disto, os sacerdotes e os escribas tinham questionado a sua autoridade por expulsar os vendilhões e ensinar ao povo num lugar sagrado cuja administração pertencia exclusivamente aos primeiros. Só que não conseguiram levar adiante aquela repreensão quando o Mestre lhes respondera com uma outra pergunta indagando sobre a origem do batismo de João ser dos céus ou dos homens (20:4), de modo que preferiram se evadir do debate.
Agora, porém, são os sacerdotes que usam de um estratagema semelhante afim de obrigarem Jesus a se posicionar. Tentaram induzi-lo a entrar numa situação de rebeldia contra Roma. Se respondesse abertamente que não, o Mestre seria fatalmente denunciado às autoridades imperiais como um criminoso político subversivo e não era seu desejo morrer como mais um rebelde contra o dominador estrangeiro muito embora ele viera para Jerusalém para ser martirizado. Vejamos que, no texto paralelo do 2º Evangelho, do qual Lucas e Mateus dependem, diz ali que a cilada fora armada com a participação dos fariseus e dos "herodianos" (Mc 12:13). Ou seja, os religiosos teriam buscado a ajuda dos partidários do rei Herodes que, por sua vez, era uma vassalo dos romanos na região. Um líder provincial cuja autoridade vinha de César.
As poucas diferenças entre o texto bíblico em comento e o original de Marcos não são capazes de causar nenhuma alteração substancial no relato acerca deste episódio. Embora Lucas tenha usado o termo genérico "tributo" (verso 22), sabemos pelo contexto que o autor sagrado só poderia ter falado mesmo do "censo" (gr. kensos). Isto é, os opositores de Jesus estavam referindo-se a um imposto específico pago ao imperador com um duplo objetivo: (i) servir como prova da submissão servil da população conquistada por Roma e (ii) recensear cadastralmente pessoas e propriedades para fins de controle estatal. Tinha, portanto, um caráter interpretado como idolátrico porque, ao contrário dos demais recolhimentos tributários, colocava um monarca no lugar de Deus. Aliás, vale dizer que o termo césar (lat. caesar), antes de ter virado nome de gente, significava "senhor" sendo sinônimo de kyrius em grego, de modo que o pagamento daquela obrigação foi vista pelos judeus como um reconhecimento ou legitimação da autoridade romana.
De acordo com o historiador Flávio Josefo, desde o censo do governador Quirino, no século 6 da nossa era, os moradores da Judeia e de Samaria começaram a ter de pagar o tal imposto a Roma (Guerra Judaica 2:17; conferir com Lc 2:1-3). Só que um grupo de revoltosos na Palestina passou a protestar contra a submissão ao cadastramento fiscal romano provocando sérios conflitos na região. Para eles era acima de tudo uma questão de fé religiosa já que os recenseados deviam jurar submissão e fidelidade a César. Muitos radicais, então, preferiram o martírio e há quem considere que o movimento dos zelotes começou por causa desse fato com uma revolta liderada por Judas de Gamala, na Galileia, vindo a receber apoio do fariseu Zadoque, discípulo do mestre Shammai.
Ao ser testado, Jesus não se deixou enredar por toda aquela lisonja feita pelos homens que vieram a mando dos sacerdotes. Percebendo que queriam arrumar pretexto para acusá-lo de sedição, pediu que lhe dessem uma moeda do denário romano, a qual continha a efígie de Tibério, seu nome e o título "divino" que utilizava. E, embora a legislação mosaica proibisse o uso de imagens esculturais (Ex 20:4), algo que encontramos claramente no primeiro dos Dez Mandamentos, alguém entre os opositores do Mestre estaria fazendo uso daquele dinheiro idólatra como moeda corrente. Nem que fosse em segredo. Logo, havia incoerência da parte daqueles homens pois seria de esperar que pagassem alguma coisa com aquilo. E, se trouxeram um denário até o Senhor, foi porque, na certa, supunham que ele praticaria algum ato desrespeitoso para com os romanos, talvez destruindo o objeto perante o público.
Sem entrar no jogo dos caras, Jesus soube posicionar-se com maestria. O Mestre não precisou dizer que seus ouvintes deveriam resistir ao recenseamento. Era suficiente afirmar que César não tem os mesmos direitos de Deus, como a glória e o louvor que são devidos unicamente ao nosso Criador, mas o mero ato de pagar o tributo, alistando-se em Belém como fizera José esposo de Maria (2:4-5), não teria importância alguma. Bastava o contribuinte ter esse discernimento.
Talvez seja por isso que o escritor do 3º Evangelho falou da questão do pagamento do censo como sendo um tributo normal, diferente dos outros sinóticos. Numa provável releitura de Marcos, o texto de Lucas mostra-nos como Jesus retirou todo o veneno daquela situação conflituosa. E, ao se posicionar de tal maneira, ele também desencorajou a conduta dos radicais da sua época em se rebelarem contra Roma por causa do alistamento que, de tempos em tempos, repetia-se nas províncias dominadas pelo império.
A admiração causada pela resposta de Jesus foi seguida por um silêncio na plateia. Os seus opositores preferiram ficar temporariamente calados ao invés de se converterem. Apenas recuaram pois, no verso 2 do capítulo 22 de Lucas, sacerdotes e escribas estarão se reunindo novamente para decidirem como tirar a vida do Senhor.
A lição deste episódio não se relaciona, a meu ver, com a legitimação da cobrança dos tributos estatais e menos ainda com os dízimos e ofertas nas igrejas. Até mesmo porque, mais adiante, o Mestre criticará os escribas por desejarem as "primeiras cadeiras" e os "primeiros lugares" bem como "devorarem as casas das viúvas" (20:46-47) . Logo, não creio que Jesus concordasse com a exploração que faziam do pobre cuja renda familiar era comprometida para manter os privilégios dos dominadores romanos e dos religiosos de seu tempo.
É justa a cobrança de tributos estatais ou de contribuições numa organização religiosa quando o dinheiro arrecadado se presta para promover o bem da coletividade. Numa situação de colonialismo ou de apartheid social, o imposto torna-se um vil instrumento de opressão de modo que o seu pagamento só poderá ser feito por motivo de coação como num assalto, para o cidadão não sofrer as consequências de sonegar algo que uma lei feita pelos homens impõe.
Portanto, não me parece que Jesus, com toda a sua cautela de se expressar, possa ter assumido uma alienante postura apolítica. O Mestre compreendia o sentimento de exploração e de injustiça dos seus compatriotas que se revoltavam contra Roma, mas preferiu apresentar um messianismo humilde e pacífico tal como pude abordar no estudo sobre sua entrada nada triunfal em Jerusalém. Interessava-lhe mais combater a opressão dos sacerdotes e dos escribas do que a dos estrangeiros. Tanto é que o seu protesto no Templo esteve focado mesmo foi no repugnante comércio da fé (Lc 19:45-46). Afinal, a desobediência civil, nas vezes excepcionais em que for praticada, precisa ser feita de modo coerente e em conformidade com a vontade de Deus e Jesus nos ensinou que seus discípulos não devem sair atirando para todos os lados.
OBS: A imagem acima refere-se a uma moeda mostrando a imagem do imperador romano Tibério no anverso contendo a inscrição que, traduzida, significa "César Augusto Tibério, filho do divino Augusto". Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia conforme consta em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Tiberius,_R6195,_BMC_49.jpg
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