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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A pergunta formulada por Jesus


"Mas Jesus lhes perguntou: Como podem dizer que o Cristo é filho de Davi? Visto como o próprio Davi afirma no livro dos Salmos:
    'Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por estrado dos teus pés,'
Assim, pois, Davi lhe chama Senhor, e como pode ser ele seu filho?"
(Evangelho de Lucas, capítulo 20, versículos de 41 a 44; versão e tradução ARA)

Como temos visto nesses últimos estudos bíblicos sobre o 3º Evangelho, iniciados aqui no blogue desde maio, Jesus encontrava-se no Templo de Jerusalém onde teve a sua autoridade questionada (Lc 20:1-2), foi provado na controvérsia acerca do pagamento do tributo a César (vv. 19-26) e os saduceus tentaram ridicularizá-lo com um falso problema sobre a ressurreição dos mortos (vv. 27-40). Agora, porém, é o Mestre quem parte para um contra-ataque finalizando aquelas discussões maliciosas.

Antes de empreender a longa caminhada de peregrinação a Jerusalém (9:51-19:44), uma outra pergunta parecida havia sido proposta por Jesus acerca da sua identidade dentro do ambiente da intimidade discipular (9:18). Mas Pedro parece ter sido o único quem soube responder ao dizer: "És o Cristo de Deus" (9:20). E, na ocasião, todos ali foram proibidos pelo Mestre de declararem tal coisa (ler o artigo "Quem dizeis que sou eu?").

Como Jesus não queria se auto-proclamar Messias e nem desejava promover uma cristolatria em torno de sua pessoa, não me parece que, no episódio em comento, ele tenha pretendido chamar a atenção sobre si diante dos escribas e sacerdotes. Muito pelo contrário! Percebo que a pergunta do Mestre foi certeira afim de que seus opositores não mais armassem ciladas. Foi uma solução sábia tendo em vista que o debate, da mesma maneira que qualquer diálogo, é uma via de mão dupla.

Conforme vimos na questão trazida pelos saduceus, suscitada com um manifesto propósito escarnecedor, podemos concluir que eles foram bem infelizes em tocarem num tema que era controvertido em relação aos fariseus. Aliás, não foi por menos que alguns escribas presentes resolveram elogiar a Jesus pela resposta dada (verso 39). Para esses teólogos da Lei, representantes dos fariseus junto ao conselho judaico, Jesus poderia ter sinalizado que pretendia aproximar-se do grupo religioso deles.

Contudo, Jesus em momento algum foi tolerante com a cretinice dos escribas e fariseus que viviam na hipocrisia religiosa e, consequentemente, não cogitava em se associar com eles. Sendo assim, sua pergunta irá colocá-los contra a parede obrigando-os a se posicionar contra os privilégios sacerdotais, caso oferecessem resposta. Sabiamente o Mestre faz menção de Salmo 110, um poema messiânico que também foi muito utilizado pela Igreja Primitiva (At 2:34-35).

Tradicionalmente entende-se que Jesus, ao citar esse salmo, teria afirmado que o Cristo, na época tão esperado pelos judeus, possui uma messianidade superior a dos antigos reis de Israel, os quais também recebiam uma unção (tanto o termo grego khristós quanto o hebraico mashíach significam "ungido"). Davi, mesmo governando Israel com autoridade divina, reconheceu ter um senhor acima dele. E, se formos ao texto das Escrituras Sagradas em seu idioma semita original, veremos que é Deus (YHWH) quem fala para o Adon do monarca. Senão leiamos os pertinentes comentários da Bíblia de Estudos de Genebra, edição de 1999:

"Por definição popular, Davi era mais importante do que qualquer um de seus descendentes. Como poderia Davi chamar o Messias de seu 'Senhor' (Sl 110.1)? Jesus está ensinando que o Messias não é simplesmente o Filho de Davi; ele é o Filho de Deus e, assim, Senhor de Davi. A messianidade de Jesus pode ser entendida, em parte, a partir deste título 'Filho de Davi', porém há outros aspectos também. Ele não pode ser olhado simplesmente como outro 'Davi', uma mera repetição." (pág. 1216)

De fato, podemos reconhecer essa superioridade pelo ministério de Jesus e os ensinamentos revolucionários que o Mestre nos transmitiu. Apesar de toda a sua fé, seu senso de justiça e disposição para louvar a Deus, Davi deve ser mais caracterizado como um guerreiro militar. Por isso, o salmista reconhece o senhorio de um outro ungido que fará obras ainda maiores do que as dele. Mesmo submetendo os adversários de Israel e se tornando vitorioso nas guerras, havia outras batalhas em diferentes aspectos da existência humana para serem travadas, as quais não foram vislumbradas por causa de suas limitações pessoais e das condições evolutivas de sua época. Afinal, tratava-se de um tempo em que, por exemplo, o ódio pelo inimigo era normalmente aceito como atitude positiva a ponto de integrar as orações dos homens justos.

O texto de Lucas, assim como o de Marcos, nos faz concluir pela ausência de resposta dos escribas e fariseus. Sabemos, por intermédio do 1º Evangelho, que o interrogatório acabou depois disto (Mt 22:46). De acordo com o teólogo italiano Sandro Gallazzi, havia uma polêmica histórica entre os judeus acerca da legitimidade da unção dos sumo-sacerdotes do 2º Templo, os quais eram escolhidos conforme a aceitação dos romanos. Aliás, segundo ele, esta teria sido uma das causas de uma dissidência que fora aberta pelos fariseus que vieram a ser ferozmente perseguidos pela ditadura asmoniana até chegarem a um acordo. Ainda assim, fariseus e saduceus sempre mantiveram suas divergências.

"Ao proclamar, no templo de Jerusalém, que o ungido era o 'filho de Davi', os fariseus são obrigados a tomar distância dos saduceus e dos sacerdotes, e a se posicionarem contra os interesses do império e a se somar às esperanças gritadas pelas multidões uns dias antes, quando Jesus entrou na cidade (...) Este mesmo salmo, porém, na boca de Jesus, nos lembra que, mais do que no filho de Davi, nós devemos pensar no 'senhor' de Davi. É assim que o próprio Davi o chama movido pelo Espírito. Davi não é 'o' sujeito da história. Davi foi 'um' sujeito, de uma história que é de salvação, porque é do Senhor: ele dá o cetro, ele desperta o povo, ele constitui sacerdotes (Sl 110, 2-4). Salvação é estar a serviço do Senhor e não se substituir a ele. O ungido é filho de Deus. Nós, filhos de Deus, somos os ungidos do único senhor da história, da nossa história (...) O senhor de Davi é, também, senhor de todos nós. Todos somos filhos do senhor de Davi; todos somos os ungidos, a manifestação viva da presença atuante de Javé na história do povo." (O Evangelho de Mateus - uma leitura a partir dos pequeninosComentário Bíblico Latinoamericano. São Paulo: Fonte Editorial, 2012, págs. 466 e 467)

Deve-se notar que o Salmo 110 fala em seu verso 4º que o Messias é um sacerdote eterno "segundo a ordem de Melquisedeque". Este então foi um personagem do livro de Gênesis, citado como rei e sacerdote do Deus Altíssimo na cidade de Salém (mesmo local da futura Jerusalém), para quem Abraão pagou o dízimo (Gn 14:18-20). Apesar da instituição do sacerdócio araônico por Moisés (Ex 30:30-33), as Escrituras já falavam de uma curiosa figura surgida anteriormente na época dos patriarcas, no princípio e nas origens de tudo. Alguém que nem israelita poderia ser porque tanto Isaque quanto Jacó ainda não haviam nascido.

Outrossim, ser considerado "sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque", significa uma colocação do Messias acima dos saduceus. Em outras palavras, Jesus teria levantado dúvidas sobre a autoridade dos sacerdotes do Templo, os quais, tal como os monarcas antigos de seu povo, também eram ungidos para a função religiosa que exerciam.

Penso que a aplicação prática desse estudo possa se relacionar aos abusos cometidos hoje por aqueles que se auto-proclamam ungidos do Senhor para devorarem o rebanho de Deus com a desculpa de estarem pastoreando almas. No discipulado de Jesus, somos feitos com ele reis e sacerdotes (Ap 1:6), sem que um tenha direitos de alegar que possui alguma autoridade sobre os demais dentro da Igreja de Cristo. Inclusive, não pode haver entre nós privilégios que induzam a uma obediência cega às lideranças ou a um colégio de obreiros. Qualquer exaltação neste sentido torna-se abominável porque tenta ocupar o lugar de Deus. Vira uma espécie de cristolatria.

Ao mesmo tempo que ninguém deve fazer uso indevido da unção, não se deve de modo algum recusá-la omitindo-se quanto ao exercício ministerial. Jesus pode não ter se auto-proclamado o Cristo mas ele agiu como um tipo de messias que ninguém em sua geração seria capaz de prever. O Mestre não se omitiu quanto ao seu papel e nos deixou o exemplo para que continuemos aqui a sua obra. Ele hoje nos chama para sermos agentes/construtores do Reino de Deus através das posições que assumimos e das relações amorosas estabelecidas com o próximo.

Como podemos conferir na sequência da narrativa do Evangelho, Jesus vai censurar esses mesmos escribas dos fariseus, acusando-os de serem "devoradores das casas das viúvas" (verso 47). E, tendo o Mestre denunciado a hipocrisia e a superficialidade dos religiosos de seu tempo, hoje não podemos deixar também de combater comportamentos semelhantes dentro da Igreja, posicionando-nos contra a exploração da fé das pessoas nos novos templos pelos que se auto-proclamam "ungidos".


OBS: A ilustração acima refere-se a um antigo mosaico da arte bizantina do século XIII encontrado na Basília de Santa Sofia (Hagia Sophia), na cidade de Istambul, Turquia. Foi extraído do acervo virtual da Wikipédia em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Christ_Pantocrator_Deesis_mosaic_Hagia_Sophia.jpg

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