"Aconteceu que, num daqueles dias, estando Jesus a ensinar o povo no templo e a evangelizar, sobrevieram os principais sacerdotes e os escribas, juntamente com os anciãos, e o arguiram nestes termos: Dize-nos: com que autoridade fazes estas coisas? Ou quem te deu esta autoridade? Respondeu-lhes: Também eu vos farei uma pergunta; dizei-me: o batismo de João era dos céus ou dos homens? Então, eles arrazoavam entre si: Se dissermos: do céu, ele dirá: Por que não acreditastes nele? Mas, se dissermos: dos homens, o povo todo nos apedrejará; porque está convicto de ser João um profeta. Por fim, responderam que não sabiam. Então, Jesus lhes replicou: Pois nem eu vos digo com que autoridade faço estas coisas." (Evangelho de Lucas, capítulo 20, versículos de 1 a 8; versão e tradução ARA)
Como vimos no estudo bíblico anterior, sobre a expulsão dos vendilhões do Templo, eis que Jesus passou a ensinar num lugar sagrado que era administrado com exclusividade pelos sacerdotes sadoquitas. E, ao que tudo indica, o Mestre ministrava as suas aulas ali sem ter sido convidado, dando a entender que o nosso Senhor, junto com os seus seguidores e apoiado pelo povo, fez uma ocupação habitual do local por alguns dias (Lc 19:47). O clero não sabia como impedi-lo.
Fico imaginando o que seria se um bando de "leigos" invadisse o Vaticano e celebrasse ali cultos religiosos sem a autorização do papa? Ou se, numa escola, um grupo de alunos resolve tomar conta do auditório de palestras e iniciar ali, por conta deles, um evento acadêmico sem o consentimento da direção ou dos professores? E ainda se, numa cidade, a praça em frente à Câmara dos Vereadores é tomada por manifestantes que resolvem iniciar uma audiência pública afim de deliberarem sobre os problemas do município?
Quer nos identifiquemos ou não com o que Jesus fez no Templo, o seu ato foi um tipo de desobediência civil. Algo polêmico não só por causa da ameaça de uso da força física contra os que faziam comércio ali mas, principalmente, pela falta de autorização por parte do sumo sacerdote. Mas o que poderiam fazer os líderes religiosos já que o povo estava ao seu lado (19:48)?
Uma estratégia usada pelos saduceus foi tentar desacreditar a liderança do Mestre perante as massas, algo que ele jamais impôs, mas conquistou por sua amorosa habilidade. Pensaram assim em enviar uma delegação composta por sacerdotes, escribas e anciãos do povo afim de encostarem Jesus contra a parede. Afinal, com que direito ele poderia invadir o Templo, botar os vendedores para fora e começar a pregar passando por cima do sumo sacerdote?
A pergunta feita no versículo 2 não se tratava de nenhum debate teológico ou de opiniões. Era uma repreensão! Estavam querendo era posicionar Jesus contra a instituição do sacerdócio e, consequentemente, contra a legislação de Moisés.
Ora, nada mais sábio do que responder a uma pergunta com outra. E, naquela situação, o Senhor conseguiu esvaziar a repreensão de seus opositores. Como eram os sacerdotes e não Jesus que tinham um telhado de vidro, a indagação se o batismo de João seria do céus ou dos homens obrigaria aqueles religiosos a se posicionarem caso fossem adiante no questionamento da autoridade do Mestre.
Quem se encontra no poder sabe muito bem que não deve assumir posições políticas a todo instante. Esta é uma razão pela qual governantes, legisladores e magistrados demoram a decidir determinadas coisas ou fornecem respostas bem evasivas. Preferem agir assim porque evitam os pontos polêmicos capazes de evidenciarem a incoerência de suas condutas ou de contrariar a opinião popular.
É claro que os sacerdotes não aceitavam e nem admitiam o testemunho de João como sendo "do céu" embora intimamente deveriam ter percebido a voz da verdade em suas pregações pela circunvizinhança do rio Jordão. Lembremos, todavia, que os religiosos rejeitaram o batismo de arrependimento (7:30) e ainda o testemunho daquele profeta acerca da autoridade do Cristo vinda de Deus:
"Eu, na verdade, vos batizo com água, mas vem o que é mais poderoso do que eu, do qual não sou digno de desatar-lhe as correias das sandálias; ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo. A sua pá, ele a tem na mão, para limpar completamente a sua eira e recolher o trigo no seu celeiro; porém queimará a palha em fogo inextinguível." (3:16-17)
Pois bem. Se os sacerdotes dissessem com demagogia que o batismo de João era dos céus, não somente estariam expondo a incoerência deles como também responderiam à própria pergunta por eles formulada. E, por fim, acabariam tacitamente admitindo o messianismo revolucionário de Jesus capaz de inverter os valores do sistema oficial dos poderosos.
Vale lembrar que, tal como Jesus, João também não recebeu autorização de sacerdote ou de homem algum para exercer o seu ministério. Ele seguiu os passos dos antigos profetas bíblicos que, diante do estado de corrupção e de apostasia da nação, saíam clamando pelas praças contra o pecado. Agiu como Elias que enfrentou Acabe e sua rainha Jezabel quando denunciou o devasso Herodes pelas injustiças que cometia.
Creio que, em todas as épocas, profetas são levantados e uma lição que tiro do estudo de hoje é que um autêntico líder das causas populares vai inevitavelmente suportar situações semelhantes quando vier a defender o fraco contra o mais forte. Nestas horas, sempre vale a pena não nos esquecermos do telhado de vidro dos poderosos, o que lhes obrigará a nos tolerar quando a desobediência civil for inteligentemente ousada.
No atual momento político brasileiro de grande tensão nas ruas, vejo que as nossas lideranças populares não estão sabendo se conduzir neste mar agitado. Ao convocarem protestos que acabam oportunizando a ação dos vândalos e resultando em confrontos violentos entre mascarados e a polícia, perdem uma grande chance de fazer história. Pois penso que acertaríamos o alvo em cheio se os representantes da sociedade civil organizada iniciassem audiências públicas em cada cidade afim da própria população interessada debater sobre como deve ser feita a aplicação do orçamento municipal em 2014.
Lembremos que, ao invadir o pátio do Templo (Jesus não entrou na parte restrita do santuário), o Senhor preencheu aquele espaço com o seu ensino e anúncio das boas-novas tomando o direcionamento da assembleia do povo. Assim também, creio que, com uma convocação popular, poderemos discutir questões decisivas para os nossos municípios e que passam necessariamente pelo gasto do dinheiro público.
Se fizermos coisas assim, certamente que seremos também questionados com que autoridade estaremos convocando e presidindo uma audiência pública sem que haja previsão na Lei Orgânica Municipal. Contudo, tal como os sacerdotes nos tempos de Jesus, eles teriam que engolir as massas e temeriam pela perda de popularidade. Então, como resultado, haveria a formação de um ambiente desfavorável para a ação dos vândalos e que também obrigaria os prefeitos e vereadores a virem debater com a população onde esta se reunisse.
Embora eu discorde do ditado de que a voz do povo seja a mesma de Deus, não podemos nos esquecer do disposto no parágrafo 1º do artigo 1º de nossa Carta Magna, o qual diz que "todo poder emana do povo" e não exclui o meio direto de exercício, sendo certo que o Criador reconhece a maneira como nos organizamos. Assim, Jesus soube explorar a brecha de que, embora o sumo sacerdote fosse quem administrasse o Templo de sua nação, o prédio era um patrimônio de todos os judeus de maneira que não teria sido ele sozinho quem expulsou dali os vendilhões e os cambistas, mas sim o próprio povo. Era papel do profeta conduzir a nação a promover justiça quando os governantes a negligenciavam. E, igualmente, tal é o ministério dos arautos da revolução do Reino de Deus.
OBS: A ilustração acima refere-se a um antigo painel iconográfico datado do século VI e de autoria anônima, o qual se encontra no Mosteiro Ortodoxo de Santa Catarina, localizado no sopé do Monte Sinai, Egito. Foi extraído do acervo virtual da Wikipédia conforme consta em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Spas_vsederzhitel_sinay.jpg
Rodrigo
ResponderExcluirInteressante. Há pastores que pregam que Jesus chicoteou os vendedores do templo. (rsrs)
Não sei se há alguma tradução corroborando tal fato. Não era do seu feitio tal atitude.
Será que houve alguma forçada de barra por parte dos escribas, Rodrigo, para deixar o Mestre em maus lençóis? (rsrs)
Caro Levi,
ExcluirCurioso que nem o 4º Evangelho fala que alguém teria sido agredido fisicamente por Jesus. Aliás, só o texto de João fala no uso do azorrague! Os sinótico nem entram neste detalhe.
"tendo feito um azorrague de cordas, expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou as mesas" (Jo 2:15; ARA).
Assim, tenho pra mim que os comerciantes deram no pé quando viram Jesus e uma multidão o acompanhando naquela ação.
Agora, sinceramente, estou focado mais em outros aspectos. O objeto dos meus estudos sequenciais que estão sendo elaborados desde maio têm sido a narrativa de Lucas onde não há menção de como os vendilhões foram expulsos:
"Depois, entrando no templo, expulsou os que ali vendiam [e compravam], dizendo-lhes: Está escrito: A minha casa será chamada casa de oração. Mas vós a transformastes em covil de salteadores." (Lc 19:45-16; ARA).
Sobre sua pergunta, segundo o contexto literário dos sinóticos a resposta é sim, embora eu não tenha como discutir se o episódio teria sido realmente histórico ou foi somente teológico. Porém, é inegável que, pelo suposto fato estar presente nos quatro evangelhos e compor a memória religiosa da cristandade, precisa ser trabalhado, significado e tratado com cautela. Como não vejo proveito prático em promover uma desconstrução do cristianismo, tento fazer uma leitura positiva da passagem bíblica em comento ainda que ferindo um pouco algumas considerações exegéticas e/ou hermenêuticas, as quais não desprezo mas sei que são irrelevantes para um sermão inspirado.
No nosso momento político atual, vi em Jesus uma desobediência civil inteligente e produtiva. Diferente desses protestos que têm oportunizado a ação de vândalos.
Abraços.