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terça-feira, 8 de outubro de 2013

Um messianismo humilde e pacífico



Costuma-se chamar a chegada de Jesus a Jerusalém como sendo a "entrada triunfal" do Messias na Cidade Sagrada. É o que, por influência da teologia tradicional, consta em muitos títulos impressos nas bíblias cristãs, postos ali pelos editores, mas ausente nos textos dos evangelhos que, originalmente, nem capítulos e versículos tinham.

Dando prosseguimento aos estudos feitos aqui sobre o Evangelho de Lucas, iniciados em maio, e atentando para o comportamento discreto de nosso Senhor Jesus Cristo, considero a sua chegada a Jerusalém como algo humilde e despido de qualquer sentimento triunfalista. O ato do Mestre foi, a meu ver, revolucionário para os valores de todos e seu ato significou o anúncio de um reinado diferente daquilo que o povo esperava acontecer. Pois, como vimos no episódio anterior, o Salvador contou a Parábola das Dez Minas ensinando que a manifestação plena do Reino não ocorreria imediatamente de modo que os servos ainda precisariam aguardar fielmente pela volta do senhor. Era assim que ele encarou aquela subida quando deixou Jericó (Lc 19:28), encarando uma serra íngreme e seca até chegar ao alto do Monte das Oliveiras e avistar dali a Cidade Santa com seu Templo.

"Ora, aconteceu que, ao aproximar-se de Betfagé e de Betânia, junto ao monte das Oliveiras, enviou dois de seus discípulos, dizendo-lhes: Ide à aldeia fronteira e ali, ao entrardes, achareis preso um jumentinho que jamais homem algum montou; soltai-o e trazei-o. Se alguém vos perguntar: Por que o soltais? Respondereis assim: Porque o Senhor precisa dele. E, indo os que foram mandados, acharam segundo lhes dissera Jesus. Quando eles estavam soltando o jumentinho, seus donos lhes disseram: Por que o soltais? Responderam: Porque o Senhor precisa dele. Então, o trouxeram e, pondo as suas vestes sobre ele, ajudaram Jesus a montar. Indo ele, estendiam no caminho as suas vestes. E, quando se aproximava da descida do monte das Oliveiras, toda a multidão dos discípulos passou, jubilosa, a louvar a Deus em alta voz, por todos os milagres que tinham visto, dizendo: Bendito é o Rei que vem em nome do Senhor! Paz no céu e glória nas maiores alturas! Ora, alguns dos fariseus lhe disseram em meio à multidão: Mestre, repreende os teus discípulos! Mas ele lhes respondeu: Asseguro-vos que, se eles se calarem, as próprias pedras clamarão." (Evangelho de Lucas, capítulo 19, versículos de 29 a 40; versão e tradução ARA)

De acordo com a tradição rabínica, era comum pessoas entrarem em Jerusalém montando em animais ao invés de prosseguirem caminhando a pé. Diz o Talmude palestino que os condutores de jumentos ganhavam dinheiro antes da Páscoa fazendo o transporte de peregrinos até à Cidade Sagrada (yBer 13d). Algo possível de ser explicado por causa da topografia acidentada do lugar e o fato de que o Templo encontrava-se edificado sobre um monte.

Mas o motivo pelo qual Jesus resolveu entrar em Jerusalém montado sobre um jumento não é dito em Lucas. É o Evangelho de Mateus que, entre os sinóticos, faz a associação do evento a uma profecia messiânica fundada numa combinação de Isaías 62:11 com Zacarias 9:9, dando a entender que Jesus buscou dar uma significação ao seu ato conforme as Escrituras (Mt 21:5). E isto é confirmado também no 4º Evangelho (Jo 12:12-16), levando-me a entender que o Mestre preocupou-se também com o fato de que sua chegada a Jerusalém não fosse interpretada como uma oposição política a Roma afim de não instigar reações violentas ao dominador estrangeiro por ocasião da Páscoa.

Sem dúvida que os intérpretes dos evangelhos sinóticos acabam recorrendo às explicações do texto de Mateus apesar deste falar em dois animais ao invés de um só (a mãe junto com o filhote). Porém, como o objeto deste artigo é compreender Lucas, deixo de lado a questão louca se Jesus teria montado dois burros ao mesmo tempo. Interessa-me conhecer qual a mensagem daquele gesto simbólico, parecendo-me que o Senhor pretendeu dizer algo muito maior e mais profundo do que simplesmente apresentar provas bíblicas sobre seu messiado. Creio que nosso Mestre amado estava apontando as características da messianidade na qual a futura Igreja deveria inspirar-se bem como lembrando o povo judeu das sábias palavras do livro de Zacarias:

"Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta, ó filha de Jerusalém: eis aí te vem o teu Rei, justo e salvador, humilde, montado em jumento, num jumentinho, cria de jumenta. Destruirei os carros de Efraim e os cavalos de Jerusalém, e o arco de guerra será destruído. Ele anunciará paz às nações; o seu domínio se estenderá de mar a mar e desde o Eufrates até às extremidades da terra." (Zc 9:9-10)

É interessante notarmos que o Salvador não chegou montado num imponente cavalo como faziam os reis antigos conquistadores de batalhas. Sua proposta é a paz e não a guerra contra o dominador romano. Uma paz que precisa ser ganha primeiramente dentro de nós mesmos como podemos extrair do louvor inspirado daquela multidão de discípulos que parecem ter encarado com grande júbilo a cansativa subida da montanha que separa Jericó, situada a quase 240 metros abaixo do nível do mar, de Jerusalém que se encontra numa altitude de 760 metros positivos.

Há uma combinação do Salmo 118:26 com uma inversão do louvor dos anjos registrado no verso 14 do capítulo 2 de Lucas que foi entoado na ocasião do nascimento do Senhor. No Natal, a milícia celestial declarou "paz na terra entre os homens [de boa vontade], a quem ele quer bem". Na entrada de Jerusalém, porém, a paz encontra-se "no céu".

Sem dúvida que estamos diante da mesma paz que pode ser experimentada na Terra por aqueles cujos corações estão focados nas coisas do Reino Celestial. Para tanto, como disse o profeta, é preciso destruir os instrumentos de guerra, abolindo o uso desses meios para podermos executar a vontade de Deus aqui. Uma conquista a ser alcançada sem imposições ou coações de qualquer tipo, e muito menos dependendo do poder político dos governos. Ao invés de uma arma, deve o discípulo se valer do anúncio das boas-novas de Cristo pregando o amor, a salvação, a aceitação incondicional do ser humano pelo seu Criador e a inclusão social dos pobres através da solidariedade.

A declaração de "paz no céu" é também uma notícia de que o Altíssimo encontra-se reconciliado conosco e sempre esteve. Apesar dos acontecimentos trágicos que marcam a existência da humanidade, não se pode ver neles sinais de uma ira divina, a qual muitas das vezes não passa de mera projeção daqueles nossos sentimentos mal resolvidos a ponto de criarmos uma teologia penitencial. Algo que até hoje tem sido uma constante na história dos povos de praticamente todas as culturas como se vê nos comportamentos de oferendas e sacrifícios às divindades.

Durante a entrada de Jesus na Cidade Santa, a multidão de discípulos oferecia o louvor e expressava gratidão. Informa o texto que ali eles se lembraram dos milagres que Deus havia feito por intermédio de Jesus e deram glória. Tais acontecimentos deveriam ser vistos como sinais de um Pai Celestial amoroso que não veio pedir contas dos nossos pecados, mas que nos perdoa e quer que com Ele vivamos em comunhão tendo o relacionamento restaurado.

De algum modo, aquela cena parecia irritar os fariseus que eram legalistas e podem ter ficado incomodados com a liberdade e com a alegria do povo na companhia de Jesus desejando reprimir a festa. Há quem entenda que, pedindo para o Mestre fazê-los calar, tais religiosos pretendiam evitar uma reação dos romanos por causa da perturbação da paz em Jerusalém, talvez pelo fato da multidão de seguidores estar proclamando alguém como rei no lugar de César. Só que não consigo ver por este lado. Pois, se os fariseus estavam tramando a morte do Senhor desde a Galileia (6:11), como nos mostra todo o contexto literário do Evangelho de Lucas, atrair a atenção de Pilatos não seria um prato feito para suas acusações?

Acredito, porém, que toda aquela festa seria incapaz de despertar o sentimento de ameaça nas autoridades romanas. Afinal, que monarca seria aquele que entra em Jerusalém montado num filhote de burro e não numa mula real como fizera Salomão quando Zadoque o ungiu rei sobre Israel (1Rs 1:33-34)? O procurador do Império Romano na Judeia estava era mais preocupado com os zelotes, os revoltosos que poderiam provocar sedições e tumultos na província. Não os louvores a Deus, o que seria algo comum e pacífico naqueles dias de peregrinação antes da cerimônia da Páscoa. Aliás, o sentimento religioso devocional da população tornar-se-ia algo bem desejável num momento que corresponde ao Independence Day dos israelitas por lembrar a libertação da escravidão egípcia através de Moisés. Roma certamente ignorava ainda o método de Deus em revolucionar as coisas sem guerras de modo que, somente décadas depois, foi que os cristãos começaram a ser notados e perseguidos pelos imperadores.

Nesse momento difícil do nosso país, em que os protestos passaram a fazer parte da rotina do nosso cotidiano de notícias, vejo muita coisa em comum entre nós e a situação política da Palestina do primeiro século que acabou em insanas revoltas militares contra Roma. Pressentindo os massacres que aconteceriam dentro de poucas décadas, Jesus então chora ao aproximar-se de Jerusalém. Um episódio que, a meu ver, dá uma especial complementação à entrada do Mestre na Cidade Sagrada, marcando o sentimento de impotência humana de um sábio em face do livre arbítrio concedido às pessoas:

"Quando ia chegando, vendo a cidade, chorou e dizia: Ah! Se conheceras por ti mesma, ainda hoje, o que é devido à paz! Mas isto está agora oculto aos teus olhos. Pois sobre ti virão dias em que os teus inimigos te cercarão de trincheiras e, por todos os lados, te apertarão o cerco; e te arrasarão e aos teus filhos dentro de ti; não deixarão em ti pedra sobre pedra, porque não reconheceste a oportunidade da tua visitação." (Lc 9:41-44)

Aquele clima de revolta instigado pelos zelotes e pelos falsos messias não iria acabar nada bem. Sabemos pela história judaica contada por Flávio Josefo que, no ano de 70 da nossa era, o general Tito, filho do imperador Vespasiano, invadiu a cidade com as suas tropas e destruiu o 2º Templo de modo que não restou "pedra sobre pedra". A geração de Jesus não havia compreendido o seu recado de paz e preferiu o caminho da guerra. Colheram o fruto dessa escolha errada. Não porque Jesus teria sido crucificado (é incorreto culpar o povo judeu pela sua morte), mas, sim, devido ao messianismo belicista contrário às sábias orientações de Zacarias.

Tendo vivido uns cinco séculos antes de Jesus, o profeta tinha total consciência de que, pela permissão divina, o seu povo era politicamente dominado por uma potência estrangeira (em seu tempo eram os persas e não os romanos). Ao invés de aconselhar a guerra, ele viu mais proveito em estabelecer uma boa relação com Dario, enxergando a oportunidade para o governador provincial Zorobabel e o sacerdote Josué reconstruírem a nação depois das sete décadas de exílio na Babilônia. E foi naquele clima de bem-estar, aceitando o desígnio de Deus, que os judeus conseguiram edificar novamente o maio símbolo nacional que era o Templo.

Que visão longa teve Zacarias! Mas quanta cegueira não obscurecia os olhos dos revoltosos do século de Jesus?! Assim, semelhantemente, temo que o povo brasileiro deixe de reconhecer a oportunidade de sua visitação neste tempo que se chama hoje. Confesso estar bem preocupado com a manutenção de um dos maiores bens que tem os hoje - a democracia.

Infelizmente, governantes e governados estão dilapidando esse patrimônio. Não faz nem trinta anos que o Brasil conseguiu livrar-se de seu último ditador militar e a desordem tem tomado conta das ruas das nossas cidades. A cada manifestação, surgem mascarados infiltrados atirando pedras em policiais e praticando atos terríveis de vandalismo. Num dos protestos de ontem (07/10), segundo o Jornal Nacional, chegaram a explodir um carro numa via pública e que acabou ferindo seis pessoas no local que foram hospitalizadas.

Em que ponto já estamos?!

Nós, cristãos e as pessoas espiritualizadas de outras tradições religiosas, precisamos orar muito por esse país e dizermos a essa nação ensurdecida que não será pela via da violência que obteremos as tão desejadas conquistas sociais. Hoje, dia 08 de outubro de 2013, a Revolução Bolchevique de 1917 completaria seus noventa e seis anos. Recordo que, em 1987, quando ainda era um pré-adolescente, assisti pela TV as comemorações das sete décadas do regime soviético, o qual ainda blefava triunfar até que, pouco tempo depois, a então URSS caiu de vez e nunca mais se levantou. O tão sonhado socialismo de Lênin acabou se degenerando no totalitarismo stalinista e a Rússia atual do senhor Vladimir Putin ainda vive debaixo dos resquícios desse fascismo de esquerda. Pois, como bem sabemos, este autoritário governante tem mantido injustamente presos os integrantes da ONG Greenpeace apenas porque os ecologistas haviam protestado pacificamente contra a inconsequente exploração de petróleo nas águas geladas do Ártico.

Todavia, o Reino de Deus é algo permanente e não será jamais destruído. Sua vinda não ocorre segundo a força militar e nem por meio da violência. Precisamos construí-lo pela promoção da paz por meio das nossas orações, ações solidárias para com o próximo e o uso de palavras que despertem a consciência dos ouvintes. Se preciso, devemos oferecer até a outra face bem como darmos a capa caso forem nos tomar a túnica. Portanto, façamos a nossa parte para que a nação brasileira saiba reconhecer a sua oportunidade presente e procure dialogar afim de construirmos um futuro melhor trilhando as veredas do pacifismo. Afinal, existem alternativas muito melhores do que esses protestos violentos vistos por aí. Busquemo-nas!


OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro cujo título em latim é Flevit super illam (1892), uma obra do artista espanhol Enrique Simonet Lombardo (1866-1927) que retrata a ocasião em que Jesus chorou por Jerusalém descrita somente em Lucas. Encontra-se atualmente no Museu de Málaga, em Andaluzia, Espanha. Foi extraída do acervo da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Enrique_Simonet_-_Flevit_super_illam_-_1892.jpg

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