"Ouvindo-o todo o povo, recomendou Jesus a seus discípulos: Guardai-vos dos escribas, que gostam de andar com vestes talares e muito apreciam as saudações nas praças, as primeiras cadeiras nas sinagogas e os primeiros lugares nos banquetes; os quais devoram as casas das viúvas e, para o justificar, fazem longas orações; estes sofrerão juízo muito mais severo." (Evangelho de Lucas, capítulo 20, versículos de 45 a 47; versão e tradução ARA)
Temos aprendido desde o mês de maio nesses estudos sequenciais sobre o 3º Evangelho que o nosso Senhor Jesus Cristo jamais mudou a sua posição em ter denunciado a hipocrisia e os privilégios dos religiosos. Ousadamente foi assim que o Mestre sempre pregou, mesmo estando no Templo de Jerusalém, expondo ali as condutas erradas dos sacerdotes e dos escribas doutores da Lei.
Na passagem bíblica acima citada, o escritor sagrado faz uma pequena e importante modificação em relação ao texto original do 2º Evangelho (Mc 12:38-40). Por algum motivo, o ensino de Jesus em Lucas foi direcionado "a seus discípulos" (verso 45). Ou seja, já em seu tempo o autor deve ter notado a necessidade de re-significar uma mensagem já conhecida para as comunidades eclesiásticas destinatárias de sua epístola. Possivelmente já deveriam existir líderes no cristianismo helenizado que estivessem tirando proveitos da fé das pessoas. Logo, essa memória da Igreja não poderia continuar restrita a um momento passado ou apenas servir de alerta para o povo.
Penso que, nos dias de hoje, essa mensagem nunca foi tão atual quando nos deparamos com pastores locomovendo-se escandalosamente em seus carrões de luxo e ainda ouvirmos uma notícia na mídia sobre um bispo católico na Europa esbanjando fortunas para restaurar um prédio religioso e ainda viajando de primeira classe afim de fazer obras de caridade na Índia. Pois parece até que certos "pregadores" inspiraram-se equivocadamente nas críticas de Jesus para devorarem as economias das pessoas humildes e repetindo os mesmos erros cometidos pelos sacerdotes e pelos escribas nas últimas décadas do 2º Templo judaico.
Não raramente esses lobos em pele de ovelhas costumam se vestir bem, tentam aparentar ser homens "espirituais" pelo modo exibicionista de se expressarem/orarem e são hábeis em arrecadarem altos valores com as ofertas que pedem. Aproveitam-se da vulnerabilidade das pessoas humildes, dos que são socialmente menos favorecidos e têm suas carências afetivas ou emocionais mal resolvidas. Só que, por trás de um terninho pomposo, esconde-se um grande charlatão e aproveitador.
Tanto o povo quanto os seguidores de Jesus precisavam estar prevenidos contra os mercenários da fé! Em Lucas, os que iriam pastorear as futuras igrejas são advertidos para não andarem pelos mesmos caminhos daqueles escribas e se guardarem de um comportamento que foi tão combatido por Jesus (ler o artigo Cuidado com o "fermento" da hipocrisia!, de 18/08/2013). Aliás, o Mestre foi bem claro quando fez menção de que haverá um julgamento severo contra esses falsos obreiros. Tanto é que, numa passagem anterior, abordada no texto referenciado, é aplicada a metáfora da Gehenna que é traduzida nas bíblias como o "inferno". Isto é, os discípulos e todas as pessoas um dia vão responder por seus atos perante o Juiz de todo o Universo, encarando então toda a verdade. Inclusive o que conseguiram ocultar dos homens.
Não é por menos que a narrativa sobre a viúva pobre encontra-se justaposta às advertências feitas por Jesus. Sem que originalmente os evangelhos fossem enumerados e divididos por capítulos e versículos, pode-se notar uma forte ligação entre a crítica aos escribas e a atitude de uma senhora de condição humilde capaz de dar tudo o que tinha para a tesouraria do Templo depositando duas moedinhas no gazofilácio. Vale dizer que ela foi mais uma vítima de um sistema religioso que o Mestre jamais aprovou:
"Estando Jesus a observar, viu os ricos lançarem suas ofertas no gazofilácio. Viu também certa viúva pobre lançar ali duas pequenas moedas; e disse: Verdadeiramente, vos digo que esta viúva pobre deu mais do que todos. Porque todos estes deram como oferta daquilo que lhes sobrava; esta, porém, da sua pobreza deu tudo o que possuía, todo o seu sustento." (Lucas capítulo 21, versículos de 1 a 4; ARA)
Curioso que os exploradores da fé costumam fazer da atitude da viúva pobre um estímulo para as pessoas lhes entregarem suas ofertas com boa disposição. Fazem assim uma leitura forçada da Bíblia ignorando muitas das vezes o próprio contexto literário. Alguns chegam a falar até que era Jesus quem estaria pedindo aquelas contribuições para seu ministério dentro de um Templo que, como sabemos, era administrado pelos sacerdotes, onde o dinheiro ali arrecadado destinava-se, dentre outras coisas, para sustentar os saduceus.
Certamente que aquela viúva, por causa de sua pobreza extrema, deveria ser a destinatária da receita do Templo e não uma ofertante. Embora Jesus tivesse reconhecido com louvor a sua atitude sincera e visto maior valor em sua oferta de duas pequenas moedas de cobre (gr. lepta), se comparada à contribuição dos ricos, podemos extrair dessa passagem a crítica de um sistema religioso que, inclusive, seria mantenedor das desigualdades sociais. Afinal, os endinheirados poderiam doar quantias maiores de seus valores excedentes sem abrirem mão do status financeiro-social que possuíam e menos ainda comprometer o próprio sustento.
Apesar de tudo, a oferta da viúva foi verdadeira. Ela que era um dos "pequeninos" teve o desprendimento necessário para dispor de tudo quanto havia em sua bolsa. Segundo o 2º Evangelho, as duas moedas equivaliam a um "quadrante" (Mc 12:42), algo que correspondia à sexagésima quarta parte de um denário romano, importando este na diária de um trabalhador. Ou seja, a contribuição daquela mulher (possivelmente uma idosa) talvez mal desse para ela comprar uns pães na padaria. Comparando a grosso modo, eu diria que ela tivesse menos do que uns R$ 2,00 hoje.
No Sermão da Planície, Jesus havia proclamado que dos pobres é o Reino de Deus (Lc 6:20). Ainda assim, o Evangelho de nenhum modo propõe que as pessoas permaneçam na miséria. Lembremos que João Batista determinou que quem tivesse duas túnicas repartissem com quem não tem (3:11). Logo, por mais que a viúva estivesse dando todo o seu sustento para manter o privilégio dos ricos sacerdotes de Jerusalém, inexistia nela qualquer sentimento de apego aos bens materiais. A mulher estava totalmente apta para ser uma construtora do Reino na Terra.
Certamente os olhares de Jesus não eram os mesmos dos sacerdotes e dos escribas intérpretes da Lei de modo que o Senhor notou a contribuição da viúva e fez pertinentes comentários com os seus discípulos. Por isso creio que o Mestre estava instruindo os seus seguidores para que, quando eles fossem pastorear as futuras comunidades eclesiásticas, tivessem uma preocupação especial para com o pobre. E, segundo o capítulo 4 de Atos dos Apóstolos, foi o que a Igreja Primitiva realizou quando o produto da voluntária venda dos bens dos seus membros era distribuído para o suprimento das necessidades visto que tudo lhes era comum (At 4:32-35).
Mais do que nunca precisamos retomar esse amor dos primeiros cristãos do passado não permitindo que haja no meio de nossas igrejas pessoas passado por necessidades financeiras. Tanto o estilo de vida luxuoso de certos pastores quanto a opulência egoísta dos membros mais avantajados são coisas que precisam ser revistas porque comprometem a unidade do Corpo de Cristo. E não foi por menos que Paulo teria criticado os coríntios quando celebravam entre si a Ceia do Senhor (1Co 11:20-21), o que refletia o relacionamento desigual dentro da comunidade de modo que não compreendiam ainda o significado daquele ritual simbólico.
Vejo que, na atualidade, há maneiras até mais inteligentes de se praticar a caridade sendo certo que a miséria hoje no Brasil tem sido reduzida graças à Previdência Social e os programas assistenciais do governo de maneira que já não vejo mais necessidade das pessoas terem que sair por aí vendendo tudo o quanto têm. Basta direcionarem suas riquezas para a promoção do Reino deixando de lado a satisfação egoísta. Assim mesmo, não podemos jamais nos esquecer que ainda há muito o que se fazer, sendo certo que, em determinados bolsões regionais e em outros países, há irmãos e irmãs passando por dificuldades, sobretudo nas zonas de guerras e de conflitos políticos, ou onde há perseguição religiosa. E, nestas horas, não tenho dúvidas de que a verdadeira Igreja possa fazer diferença no planeta.
Uma ótima semana para todos!
OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro O óbulo da viúva (1876) do artista carioca João Zeferino da Costa (1840-1916), o qual se encontra atualmente no Museu Nacional de Belas Artes, na cidade do Rio de Janeiro. Foi extraída do acervo da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Jo%C3%A3o_Zeferino_da_Costa_-_O_%C3%B3bolo_da_vi%C3%BAva,_1876.jpg
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