Muito interessante ver como que a Alemanha, hoje uma nação que considero pouco religiosa, está comemorando os cinco séculos da Reforma Protestante.
Fato é que tal movimento não teve relevância apenas no campo religioso, mas foi um marco político muito importante e que quebrou o domínio do catolicismo romano dentro da Europa Ocidental do século XVI, mudando profundamente a maneira de pensar do ser humano.
Certamente que um dos maiores legados deixados por Martinho Lutero, seguido neste aspecto pelos demais reformadores, foi o princípio da livre interpretação da Bíblia, livro que é considerado autoridade escriturística dentro da cristandade. Ou seja, a partir de então, o cristão não precisaria mais depender da visão doutrinária do clero católico para construir o seu entendimento acerca da literatura sagrada e isto fez com que a própria religião pudesse passar por transformações mais aceleradas.
Fato é que este foi mesmo um ponto basilar para que as outras teses da Reforma se desenvolvessem. Por exemplo, a doutrina da salvação pela fé pessoal, defendida pelo luteranismo, jamais se estabeleceria se Lutero não houvesse se sentido livre o suficiente para pensar e interpretar de outra maneira o Novo Testamento, ainda que as suas ideias fossem todas fundamentadas na Bíblia. E o mesmo pode ser dito quanto ao fim da obrigatoriedade do celibato dos clérigos, assim como no tocante à contestação da venda das indulgências, incluindo aí os questionamentos quanto ao purgatório e à crença no poder papal de perdoar pecados.
Interessante foi que Lutero também democratizou o acesso das pessoas ao livro base da religião cristã quando traduziu as Escrituras para o alemão, versão que, por sua vez, foi impressa e amplamente distribuída. Com isto, passou a haver uma grande produção de conhecimento teológico diversificado no mundo, com o surgimento de novas visões que iriam até se confrontar com o luteranismo e com o próprio cristianismo.
Que pensamentos heterodoxos sempre existiram na religião cristã, antes mesmo da Reforma Protestante, isso é fato, pois Lutero não foi o primeiro a questionar os dogmas do catolicismo. E, por sua vez, ele não foi o primeiro reformador porque mudanças sempre ocorreram na cristandade. Porém, o que tivemos em 1517 foi um rompimento e a formação de um ambiente no mundo mais favorável ao livre pensamento.
Se hoje temos uma grande variedade no pensamento cristão, isto se deve à Reforma. E aí falo não só das dezenas de milhares das igrejas evangélicas que foram criadas. Incluo também os grupos espíritas, originados do kardecismo no século XIX, visto que os mesmos são também adeptos de um livre pensar, ainda que não se prendendo às Escrituras. Aliás, até o criticismo bíblico beneficiou-se com as inovações trazidas por Lutero.
Cá no Brasil, um dos mais expressivos países evangélicos do mundo, observo que pouco se comemora a Reforma Protestante. As igrejas que aqui predominam em números de adeptos (em sua maioria do ramo pentecostal) não preservam uma forte identidade com o movimento de 500 anos atrás. Aliás, vejo que muitos líderes atuais dessas instituições perderam-se quando resolveram se esconder atrás de uma teologia nociva de autoridade pastoral onde, na prática, uma discordância qualquer acaba enfrentando inúmeros obstáculos para ser exercida pelo membro que decide tirar suas próprias conclusões. Principalmente se ele for "pensar fora da caixa".
De qualquer modo, vejo que, graças à Reforma Protestante, temos hoje no mundo uma Igreja mais flexível e aberta. Até o catolicismo precisou evoluir e hoje está muito mais a frente do que inúmeras denominações evangélicas ultra-conservadoras e fechadas. E, felizmente, já existem igrejas pelo mundo que estão avançando no pensamento teológico como aquelas que passaram a aceitar o ecumenismo, o casamento igualitário e a ordenação de mulheres e de homossexuais como pastores.
Para concluir, digo que o movimento reformador numa religião, seja ela qual for, jamais deve estagnar. E a reforma precisa continuar acontecendo com a maior liberdade possível, em sinceridade de consciência e sem o abandono da tolerância, a qual torna-se indispensável para que pensadores diferentes (e divergentes) continuem convivendo entre si promovendo o progresso mútuo.
Viva a Reforma!
OBS: A ilustração acima refere-se a uma pintura de Martinho Lutero, aos 46 anos de idade, feita por por Lucas Cranach, o Velho, em 1529.
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