A notícia de que familiares dos quase 60 presos mortos em chacina no COMPAJ vão receber indenização a ser paga pelo governo do Amazonas fez com que se reacendesse antigos debates relativos à responsabilidade estatal quanto à segurança pública.
Inegavelmente essa questão diz respeito a algo que, embora esteja melhor explicado no meio jurídico, nem sempre é compreensível pelos leigos da sociedade. Ainda mais quando discursos reacionários inflamados pelo ódio apelam para o fato de que a pessoa que sofre violência nas ruas dificilmente é indenizada quando um bandido ameaça, rouba, espanca, estupra, lesiona e até mata a vítima.
Inicialmente é necessário dizer que, para ser gerado o direito à indenização, deve a vítima provar o nexo causal que é a ligação entre a conduta do Estado e o resultado do dano sofrido. Ou seja, precisa ficar demonstrado o descumprimento do dever estatal e que tal ação ou omissão foi decisiva para que ocorresse o efeito danoso.
Neste sentido, surgiu a teoria do risco administrativo, a qual também alcançou a legislação brasileira. O artigo 37, § 6º, da nossa Carta Magna de 1988 seguiu a linha adotada nas constituições anteriores, mantendo a responsabilidade civil objetiva da Administração Pública. O dispositivo deixa evidente a obrigação de indenizar o dano causado a terceiros pelos agentes estatais, independentemente de prova de culpa no cometimento da lesão. E, por essa ótica, é considerado um dano indenizável alguém, por exemplo, ser atingido em via pública por um projétil de arma de fogo proveniente de tiroteio entre policiais militares e marginais.
Entretanto, a responsabilidade estatal quanto à segurança pública não se esgota com a aplicação dessa única teoria. Até porque não é só a conduta comissiva que pode causar danos indenizáveis ao indivíduo, devendo ser considerada também a omissão ou a atuação ineficiente dos agentes estatais. E a base legal disto encontra-se no artigo 43 do Código Civil, de acordo com o qual
"as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo".
Vale dizer que os atos omissivos costumam ser classificados em omissivos genéricos e específicos, em que se exige para os primeiros a prova de culpa da Administração e, no tocante aos segundos, admite-se a responsabilidade objetiva, tendo em vista que, neste caso, estaríamos diante de hipótese de uma violação do "dever individualizado de agir", a que o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello acrescentou ainda uma outra condição: a de que só responderá o Estado caso restar demonstrado que o evento danoso poderia ser por ele impedido.
Em que pese a discussão existente no Direito sobre a irrelevância de ser caracterizada a culpa para que se opere a responsabilidade civil estatal omissiva, tendo em vista o referenciado texto constitucional, o certo é que tanto a doutrina quanto a jurisprudência brasileira, em sua ampla maioria, consideram procedente um pedido de indenização quando o dano resultar da omissão específica do Estado. Ou seja, quando a inércia administrativa torna-se a causa direta e imediata do não impedimento do evento, a exemplo dos casos de acidente de um estudante em escola pública (durante o período de aula) ou de morte de detento em penitenciária conforme várias vezes já decidiu o Tribunal de Justiça daqui do Estado do Rio de Janeiro, como se observa neste julgado:
"APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR OMISSÃO. MORTE DE DETENTO. REBELIÃO EM PRESÍDIO. O Estado responde pela morte em estabelecimento carcerário por ocasião de rebelião dos presos, constatada a sua omissão no dever de vigilância e custódia dos detentos. Violação da garantia de integridade física e da própria vida do detento, assegurados no art. 5º, caput e inciso XLIX da CR e art. 40 da Lei 7.210/84. Responsabilidade objetiva, fundada no risco administrativo. Verba reparatória por danos morais que se reduz para R$15.000,00, em observância aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, atentando-se para o fato de a vítima ter deixado dois filhos, adequando-se aos precedentes desta Corte de Justiça. Honorários de sucumbência arbitrado na forma do § 4º do art. 20 do CPC. PROVIMENTO PARCIAL DO PRIMEIRO RECURSO E NEGATIVA DE SEGUIMENTO DO SEGUNDO." (0082887-63.2005.8.19.0001 - APELAÇÃO - 1ª Ementa - Des(a). LEILA MARIA CARRILO CAVALCANTE RIBEIRO MARIANO - Julgamento: 15/03/2011 - SEGUNDA CÂMARA CÍVEL). - destaquei
Mas na hipótese de uma omissão genérica, ainda é forte o entendimento de que o Estado não pode se tornar um garantidor universal contra todo e qualquer tipo de lesão sofrida pelas pessoas. Nesta visão, se, em cada delito ou acidente causado por alguém da sociedade, o Poder Público for condenado a indenizar o particular, seria criada uma situação insustentável. Pois, no que diz respeito à questão da segurança, significaria a obrigação da Polícia se fazer presente em todo o território e em todo o tempo.
A esse respeito, assim vem se posicionando há tempos o Tribunal de Justiça fluminense como se lê na ementa a seguir transcrita, a qual se refere ao julgamento de uma ação movida por um advogado que havia sido assaltado por um bando de homens, os quais levaram seu carro, objetos pessoais seus e de sua acompanhante, além de autos de processos judiciais que estavam sob sua responsabilidade:
"Apelação cível. Responsabilidade civil do Estado. Dano moral. Assalto por um bando de marginais armados. Roubo de veículo e de pertences do apelante, em rua de entrada e saída da Favela do Muquiço. Alegação de má prestação do serviço de segurança pública. Sentença que julgou o pedido improcedente, adotando entendimento de ser a responsabilidade subjetiva, no caso de omissão do Estado. O § 6º do art. 37 da CF/88 estabelece a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público, sem distinção entre a conduta comissiva ou omissiva de seus agentes, mas não adota a teoria do risco integral, não sendo o Estado garantidor universal. No caso, não há provas de que a região estivesse conturbada e a polícia tenha se omitido. Analisada a omissão quanto à segurança pública, não pode o Estado estar onipresente, pelo que não havendo prova de que foi chamado a agir e se omitiu, não é de se reconhecer a responsabilidade pela omissão genérica, por ausência de culpa e de nexo causal. Em qualquer dos entendimentos doutrinários ou jurisprudenciais, a pretensão do apelante não merece prosperar, embora se lamente e seja motivo de revolta a ocorrência de fatos como o que lhe causou danos. Sentença de improcedência que merece ser mantida. Recurso não provido." (0005805-19.2006.8.19.0001 - APELAÇÃO - 1ª Ementa - Des(a). NANCI MAHFUZ - Julgamento: 17/03/2009 - DÉCIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL)
De qualquer modo, esse entendimento não significa que os crimes cometidos nas vias públicas estejam totalmente fora da órbita da responsabilidade civil estatal. Pois, dentro de uma espiral evolutiva do Direito, tem sido cada vez mais amplo o reconhecimento das obrigações específicas no caso de situações em que, independente do particular chamar a Polícia ou não, a intervenção do Estado numa localidade pode tornar-se tão evidente a ponto da omissão de seus agentes ser considerada injustificável.
Neste sentido, se numa determinada localidade, são várias as ocorrências de um certo tipo de delito e as providências cabíveis não são tomadas, será que a obrigação de, por exemplo, aumentar o efetivo policial, na respectiva área, não se tornaria algo específico?
Outra hipótese. Se uma reportagem jornalística produzida de maneira séria mostra que, há tempos, pessoas estão sendo violentadas num determinado lugar, sem que nada de concreto seja feito pelo Estado, considero possível pleitear o direito a uma indenização caso, num momento posterior, novos delitos semelhantes venham a ocorrer ali.
Assim sendo, é recomendável que, diante do ajuizamento de ações sobre essa questão, os interessados pesquisem e colecionem notícias da imprensa que possam servir de prova do descumprimento obrigacional numa futura demanda. Declarações ditas pelos governadores, secretários de segurança e comandantes da PM em assuntos pertinentes serão sempre muito úteis porque comprovarão o abandono do lugar.
Hoje em dia, com as novas tecnologias, a exemplo das facilidades do videomonitoramento, torna-se muito maior a capacidade do Estado estar presente em vários locais assim como desenvolver uma previsibilidade mais precisa sobre determinados acontecimentos. Com isso, os espaços públicos poderão contar a cada dia mais com mecanismos de defesa aperfeiçoados em que a vítima terá à sua disposição meios de pedir socorro, devendo ser eficientemente atendida.
Para finalizar esse texto, termino colocando que o direito das famílias dos presos mortos em Manaus e em Roraima, quanto ao recebimento de indenização, não deve em hipótese alguma ser combatido pela sociedade. Do contrário, estaremos seguindo pelo caminho do retrocesso e que nos colocará num distanciamento quanto à possibilidade de sermos indenizados pela omissão estatal relativa à falta de segurança pública.
Tenham todos uma ótima semana!
OBS: Créditos autorais da imagem acima atribuídos a Tomaz Silva/Agência Brasil, conforme extraído de http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-05/policia-reforca-vigilancia-contra-assaltos-no-centro-do-rio
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