Embora o Congresso Nacional esteja às vésperas de aprovar uma nova lei sobre crimes raciais, prevendo penas mais duras (Projeto n.º 6418/2005 do senador Paulo Paim do PT gaúcho), ainda se ouve durante esses dias de Carnaval, tanto nas ruas como nas casas, algumas marchinhas como O teu cabelo não nega cuja letra é altamente preconceituosa:
"O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, eu quero o teu amor"
É certo que estamos a falar de algo surgido há cerca de oito décadas atrás. Tal canção foi criada em 1929 pelos Irmãos Valença, no Recife, com o título Mulata. Tornou-se nacionalmente conhecida quando Lamartine Babo (1904 - 1963), após fazer algumas adaptações, lançou-a com o nome atual no Carnaval de 1932. Algo que chegou a causar uma peleja judicial. Não por causa do racismo, mas sim pelos direitos autorais.
Tendo vencido a ação em todas as instâncias, os Irmãos Valença tiveram reconhecida a autoria da composição, inclusive recebendo uma indenização da então gravadora Victor, a qual havia solicitado a Lamartine as modificações na música. Contudo permitiu-se que este fosse mantido como um dos coautores, em virtude das adaptações que fizera, a pedido da gravadora.
Ora, não tenho dúvidas de que se a música fosse composta a partir de 1989, quando o Congresso Nacional já havia aprovado a atual Lei n.º 7.716, João e Raul Valença, assim como Lamartine Babo e o dono da gravadora, teriam sido todos presos pela polícia sem direito a fiança (art. 20 da norma vigente citada). A pena ainda chegaria a ser majorada para até cinco anos de reclusão pela divulgação da marchinha nos meios de comunicação que, na época, seriam os rádios e jornais porque a TV ainda não existia no Brasil.
O fato é que, apesar do plágio musical e do racismo (há quem veja também um alto teor de machismo), O teu cabelo não nega acabou entrando para a história da MPB de modo que não vejo hoje qualquer possibilidade de algum órgão público impedir a sua divulgação em território nacional. Talvez o seu uso com conotação racista, conforme o contexto em que ocorre a reprodução, pode caracterizar conduta ilícita, o que não seria o caso de meramente relembrarmos o passado.
Nunca podemos nos esquecer de que a perversidade do racismo brasileiro encontra-se em sua sutileza. Por trás da hipócrita afirmação de que aqui seria uma "democracia racial", inúmeros atos de depreciação ao indivíduo são praticados como se fosse simples brincadeirinha entre amigos, o que não é verdade. Basta nos colocarmos no lugar de um negro, ou de uma mulher negra, para sentirmos o quanto é doloroso sofrer certos tipos de preconceito. No caso da música, assim ocorre como bem comentou o blogueiro Marcio Alexandre M. Gualberto, em seu artigo de 21/04/2005:
"Bonitinha essa marchinha, não? Quantas vezes já cantamos em época de carnaval, né? Mulata, negona gostosa, carnões bons de apertar, quem não gosta? Mas vejam que beleza: "o teu cabelo não nega". Uma afirmação da negritude. "Mas como a cor não pega, eu quero o teu amor". Putz, vê-se que é música de branco para branco: o cara quer comer a mulata mas não quer ser da cor dela. Tal como essa temos uma série de "sutilezas" do racismo brasileiro nas músicas, na literatura, nas artes, nos meios de comunicação. Eu ponho sutileza entre haspas porque, para nós negros, nada disso é sutil. Pelo contrário, está às escâncaras. Nós percebemos facilmente. Mas quando tocamos no assunto os brancos vêm dizer que estamos querendo pôr chifres em cabeça de cavalo."
Não tiro a razão de todas essas críticas, mas faço a ressalva de que, na primeira metade do século passado, a sociedade ainda não tinha a devida consciência da extensão do racismo e nem de outros preconceitos até aí cultivados como coisas normais. Até nas escolas e igrejas a segregação ainda era promovida! E para piorar mais ainda, havia gente da intelectualidade brasileira na época que expressava saudades dos tempos da escravidão em seus discursos e artigos publicados nos jornais. Eu mesmo, na década 80, sendo ainda um menino, lembro-me que algumas pessoas idosas que, em suas visitas na casa de meu avô, expunham esse tipo pensamento atrasado.
Mas os tempos mudam, não é mesmo?! Felizmente o negro tem ganhado dignidade em nossa sociedade ainda que falte muito para isso se tornar algo pleno e compensador. Mas nesse contexto, o que fazer com a marchinha senão relembrá-a como parte da história? Daí proponho que algum compositor elabore uma nova versão para música pois, considerando que as pessoas a ouvem hoje em dia mais pelo ritmo do que pela letra, bem como tendo em vista o lapso temporal superior a setenta anos desde sua criação, que tal as pessoas que gostam de Carnaval cantarem algo sem preconceito? E, quanto às versões antigas, sugiro que a própria sociedade as deixe como registros históricos de uma época em que atos de indignidade motivados pela raça, cor da pele, sexo e origem ainda eram banalizados. Neste sentido, a música pode contribuir para uma melhor investigação do nosso passado. Proibir qualquer reprodução agora seria uma tremenda burrice.
Um bom feriado a todos!
Proibir hoje a reprodução seria de fato, burrice. Mas tem um movimento por aí, politicamente correto, que quer banir qualquer comentário mais jocoso por ser "racismo"; não acho que eu chamar um amigo negro meu de "negão" seja racismo, assim como já fui muitas vezes chamado de "branco azedo" quando era mais novo e nem tão queimado de sol como sou hoje.
ResponderExcluirQuerem censurar até o Monteiro Lobato por escrever termos como "negrinha" em seus livros infantis. Creio que racismo é algo muito mais amplo do que isso.
A turma do politicamente correto quer banir até a expressão "nuvens negras", Rodrigo.
ResponderExcluirVou me policiar (rsrs) . Nuvens negra, não. O correto será de agora em diante: "Nuvens carregadas de uma tonalidade sombria" (rsrs)
Prezados Eduardo e Levi,
ResponderExcluirInicialmente quero agradecê-los pela leitura e comentários ao meu texto.
Penso que o racismo vai ocorrer conforme o contexto dos fatos. Se, por exemplo, alguém se utiliza da marchinha em tela para ofender uma pessoa em razão de sua negritude ou miscigenação, sem dúvida que estará descriminando. Mas o cantar por cantar, não tem nada a ver. Inclusive não duvido que muitos cidadãos afrodescendentes a curtam. Aliás, recentemente foi lançado um CD em ritmo de funk com esta e outras marchinhas em que há cantores negros e mestiços participando da produção...
Esse movimento do "politicamente correto" torna-se perigoso quando chega a censurar opiniões e manifestações culturais ao invés de focar na conscientização. Isto porque atitudes assim podem despertar uma reação indesejada de outros grupos sociais o que viria a causar retrocessos. Eu, por ex., não aprecio a marchinha assim como não tenho simpatia pelo Carnaval. Contudo, apesar de toda a discordância, quero defender firmemente o direito de expressão das pessoas.
Quanto ao Monteiro Lobato, assim como o Lamartine Babo, ele também não tinha plena consciência do racismo. A maneira como se expressava era normal e aceita dentro do contexto que ele vivia na primeira metade do século XX da mesma maneira que não havia ainda uma preocupação ecológica. Não se lê em seus livros uma apologia à escravidão negra ou uma intolerância racial. Há sim o registro da nossa evolução dentro da literatura.
Já atualmente penso que devemos de fato nos policiar. Não de uma maneira absurda como agem pateticamente alguns ativistas ultra radicais, o que é normal de se encontrar em praticamente todos os movimentos: ambiental, de combate ao racismo, nas religiões, no feminismo, entre os gays e lésbicas, comunistas, etc.
Abraços.
Excelente texto! Como você bem observou, muitas pessoas cantam essa música por ser alegre e atinente ao movimento carnavalesco. Me incluo nesse rol de pessoas, entretanto, conversando com minha filha, mais atenta do que eu, em alguns aspectos, me observou o cunho preconceituoso da letra e me mandou seu link. Seu texto foi muito esclarecedor, e, assim como ela, a partir de agora, vou observar para as pessoas que curtem essa música, de modo a multiplicar esse entendimento.
ResponderExcluirOlá, Cleonice. No Carnaval de 2017, parece que essa é outras marchinhas politicamente incorretas foram excluídas por alguns blocos do Rio. Inclusive algumas que zombavam da sexualidade como "Maria Sapatao" e "Cabeleira do Zezé"
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