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sábado, 10 de outubro de 2020

É preciso que o DNIT tenha mais flexibilidade quanto às edificações irregulares nas margens de rodovias federais!




No dia 26/11/2019, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei Federal n.º 13.913, de 25 de novembro de 2019, dando uma nova redação a dispositivos do artigo 4º da Lei nº 6.766/1979, a fim de assegurar o direito de permanência de construções na faixa não edificável contígua às faixas de domínio público de rodovias, bem como para possibilitar a redução da extensão dessa faixa não edificável por lei municipal ou distrital.

Com isso, parte das famílias residentes perto de estradas federais ou estaduais, que se encontram ameaçadas de remoção, pôde respirar aliviadas, embora, de certo modo, dependendo da legislação de cada cidade dispor sobre o instrumento do planejamento territorial, desde que respeitado o limite mínimo de 05 (cinco) metros de cada lado da via. 

Por sua vez, muitas das edificações já construídas nas áreas contíguas às faixas de domínio público dos trechos de rodovia que atravessem perímetros urbanos ou áreas urbanizadas passíveis de serem incluídas em perímetro urbano, encontram-se, em via de regra, já regularizadas. Isto é, não há a necessidade de redução da reserva de faixa não edificável através da lei local, exceto se houver algum ato em sentido contrário do Poder Público Municipal que esteja devidamente fundamentado.

Deve-se ponderar que a Lei Federal n.º 13.913, de 25 de novembro de 2019, que alterou a Lei n.º 6.766/1979, veio regularizar um problema antigo em nosso país que é a ocupação das faixas de domínio público das rodovias e também das faixas não edificáveis. Agora, com a redação dada ao inciso III e ao acrescido parágrafo 5º, ambos do art. 4º da Lei do Parcelamento do Solo, houve uma mudança significativa que deve ser observada por todos, inclusive pelo próprio DNIT. Senão vejamos as mudanças introduzidas pelo legislador federal:

“Art. 4o. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos:
(...) 
II - ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias, será obrigatória a reserva de uma faixa não-edificável de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica;                      (Redação dada pela Lei nº 10.932, de 2004)
III – ao longo das faixas de domínio público das rodovias, a reserva de faixa não edificável de, no mínimo, 15 (quinze) metros de cada lado poderá ser reduzida por lei municipal ou distrital que aprovar o instrumento do planejamento territorial, até o limite mínimo de 5 (cinco) metros de cada lado.    (Redação dada pela Lei nº 13.913, de 2019)
(...)
§ 5º  As edificações localizadas nas áreas contíguas às faixas de domínio público dos trechos de rodovia que atravessem perímetros urbanos ou áreas urbanizadas passíveis de serem incluídas em perímetro urbano, desde que construídas até a data de promulgação deste parágrafo, ficam dispensadas da observância da exigência prevista no inciso III do caput deste artigo, salvo por ato devidamente fundamentado do poder público municipal ou distrital.    (Incluído pela Lei nº 13.913, de 2019)”

Como é de conhecimento geral, a Lei Federal n.º 6.766/1979, aprovada ainda durante o regime militar, teve uma importante missão de ordenar territorialmente o uso do solo em nível nacional, em contraposição à ocupação irregular que consiste numa chaga dos centros urbanos, pois raras são as cidades planejadas. A norma trouxe restrições à ocupação em algumas situações, em especial, ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias, ferrovias e dutos. 

Entretanto, a Lei nº 13.913, de 25 de novembro de 2019, aprovada pelos parlamentares, por meio de substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei (PL) 693/2019 do Senado Federal, veio alterar as regras da faixa não edificável para permitir a regularização fundiária em locais até então proibidos à regularização de moradias.



Cá em Mangaratiba, assim como em muitos outros lugares da rodovia Rio-Santos, a nova lei permite que uma grave injustiça histórica seja reparada quanto a noa parte dos moradores e pequenos empresários que construíram nesses locais as suas residências ou estabelecimento de comércio. E, no próprio distrito de Muriqui, onde me encontro morando desde agosto de 2012, muitas famílias estão nessa situação.

Recordo muito bem quando, na manhã do dia 15/07/2019, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e a Prefeitura de Mangaratiba, com a presença de policiais armados de fuzis, notificaram vários moradores da BR-101, a exemplo da primeira foto desta postagem, a fim de que, no prazo de 15 (quinze) dias, todos desocupassem a faixa de domínio da União e descontinuassem eventuais obras ou serviços que estivessem sendo executados. Foram inúmeras famílias que começaram a receber tais comunicados, o que caracterizou um flagrante desrespeito ao direito à moradia que é previsto constitucionalmente.

Sendo chamado por uma amiga do lugar para que atuasse no caso em favor de uma comunidade ali localizada, fiz então contato com a Defensoria Pública da União (DPU) e solicitei que esta renomada instituição de proteção jurídica da população carente recebesse uma manifestação que escrevi com os anexos juntados à petição (cópias das notificações e documentos dos moradores) a fim de que fossem tomadas as medidas necessárias em defesa das coletividades de moradores. Argumentei que se tratava de uma violação dos direitos dos mesmos quanto à habitação de maneira que seria cabível até o ajuizamento de uma ação civil pública perante a Justiça Federal, caso não alcançada uma mediação com todos os órgãos públicos envolvidos.

Ocorre não ser nada razoável da parte do DNIT e da Prefeitura de Mangaratiba terem exigido que os moradores notificados em meados de julho de 2019 fossem obrigados a desocupar seus imóveis num prazo de 15 (quinze) dias, sem nem ao menos lhes oferecer outras opções de moradia como o pagamento de um aluguel social ou a construção de casas populares em outro lugar mais propício para a habitação social. Até porque, segundo consta num relatório elaborado na época da Secretaria Municipal de Planejamento de Mangaratiba, não haveria recursos disponíveis até então para a construção de moradias populares e nem o pagamento do aluguel social, sendo que tal situação financeira do Poder Público, após a pandemia, provavelmente deve ter se agravado. Senão vejamos o que diz o documento de 02/07/2019 assinado pelo secretário adjunto de planejamento da Prefeitura:

“Junto ao Prefeito Municipal, senhor Alan Campos da Costa, e o Secretário de Obras, senhor Márcio Gomes, estivemos em Brasília, no último dia 25 de junho, em agenda com o ministro de desenvolvimento regional, Gustavo Canuto. Lá, ao apresentarmos nosso pleito, ouvimos do ministro que, em função do contingenciamento determinado pelo Presidente da República, o Ministério não dispõe de recursos para habitação nesse momento. Entretanto, é esperado um remanejamento de recursos, já que o Congresso Nacional autorizou o Governo Federal a captar mais de 200 bilhões de Reais para pagar despesas correntes”

Em relação às possibilidades do governo estadual colaborar, foi informado que o Município não poderia contar naquele ano com o aluguel social do Estado e que não haveria recursos para a construção de casas populares “e que ainda espera liberação de recursos federais para a construção das que foram contratadas na gestão anterior”.



Os meses passaram, a maioria dos notificados permanece lá até hoje, mas o DNIT, ao invés de buscar uma regularização das ocupações que não causam risco, tem ingressado com recentes ações judiciais na tentativa de remover várias famílias e comerciantes de lá, alegando que suas casas se encontram na área de domínio e que a edificação causaria risco aos usuário da rodovia e aos ocupantes dos imóveis.

Deve ser considerado que uma área de domínio de rodovias, por si só, não pode ser considerada como suficiente para se autorizar a retirada quase que imediata dessas famílias do lugar onde elas estão morando há muitos anos. Pois, além da necessidade de uma ação judicial de desocupação da área de âmbito coletivo, caberia à União Federal, em conjunto com os demais entes federados, ponderar acerca das questões sociais ali relacionadas.

Neste sentido, fundamental considerarmos que uma adequada compreensão dos conflitos possessórios também se passa pelo entendimento de que a função social da propriedade, mesmo pública, foi consagrada na Constituição Federal de 1988 como direito fundamental (art. 5º, inc. XXIII) bem como princípio da ordem econômica (art. 170, inc. III). E isto significa que a conformação jurídica da propriedade (enquanto fenômeno de apropriação exclusiva de coisas) é integrada pela função social.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que a função social significa que a propriedade é um poder-dever, pois cabe ao proprietário (mesmo um ente público), ao utilizar os bens, buscar o atendimento de finalidades coletivas, não apenas de seus propósitos individuais. E aí, se por quase meio século de construção da rodovia Rio-Santos, nos anos 70, o Poder Público nada fez de eficiente para evitar que as proximidades da estrada fossem ocupadas por construções irregulares, não será agora que o DNIT irá expulsar de lá as famílias dos lugares por elas ocupados, gerando uma vil desestabilidade social, ainda mais nesses tempos de pandemia.

Registre-se que jamais podemos ignorar que o atendimento da função social da propriedade pressupõe o efetivo uso do bem. E, nesse sentido, fala-se também em função social da posse. Pois, na medida em que esta implica em algum tipo de uso, a função social que todo bem suscetível de apropriação deve ter é verificada pela posse e pelas atividades dela decorrentes.

De outro lado, os ocupantes dessa e de outras localidades em situação semelhante apresentam um dado fático que é a efetiva destinação do lugar a uma finalidade que é a moradia, ainda que precariamente. Esta se torna tanto mais relevante quanto mais consolidada é a posse, sendo certo que o próprio Poder Executivo Municipal fez melhorias no lugar ao longo de anos a exemplo de um campo de futebol na comunidade do Morro São Sebastião, em Muriqui.

Portanto, a análise do conflito em questão não pode prescindir da verificação do cumprimento da função social da posse. E, consequentemente, a tradicional pergunta “quem tem a melhor posse?” pode ser reconduzida a “quem tem posse que cumpre função social?”. E, por isso, não podemos resumir a discussão a uma simples análise do título de propriedade pelo DNIT uma vez que isto não se coaduna à disciplina constitucional da propriedade.

Ora, ainda que o interesse público venha a justificar uma futura desocupação do local (na hipótese de um projeto de duplicação da rodovia, por exemplo), qualquer decisão acerca do assunto precisa ser bem refletida e ponderada pelos gestores federais e locais, devendo antes ser realizados projetos habitacionais para moradia das famílias afetadas por meio de casas populares com o pagamento de um aluguel social.

Jamais deve ser ignorado que, no caso de ocupação de faixa de domínio do DNIT, se houver condições, é possível ao interessado obter uma permissão especial para uso pelo particular, em conformidade com o que diz o art. 50 do Código Brasileiro de Trânsito (Lei Federal n.º 9.503, de 23 de setembro de 1997) que assim diz: 

“Art. 50. O uso de faixas laterais de domínio e das áreas adjacentes às estradas e rodovias obedecerá às condições de segurança do trânsito estabelecidas pelo órgão ou entidade com circunscrição sobre a via.”

Ademais, indaga-se como que o DNIT permite a existência de empreendimentos que se acham nos limites da faixa de domínio da rodovia  aqui em Mangaratiba, como os postos de gasolina, obras públicas e, ao que me parece, até luxuosos resorts e condomínios como estas construções da foto a seguir, situadas entre a Rio-Santros e a praia?!



Deste modo, há que se ter bom sendo no sentido do DNIT buscar uma conciliação a fim de verificar se os moradores das áreas de domínio, uma vez constatando que suas edificações não oferecem risco, possam obter uma permissão especial para uso da área ocupada, tanto para fins residenciais quanto comerciais, buscando uma solução amigável para cada caso, com a formalização de um futuro contrato de permissão.

Como pode ser visualizado no próprio portal do DNIT na internet, o processo de autorização de uso das faixas de domínio é composto por três fases: (i) a solicitação do uso de viabilidade; (ii) a análise dos projetos; e (iii) a permissão do uso. De acordo com o site oficial da autarquia: 

“A avaliação dos pedidos é feita em duas etapas e pode levar até 90 dias – tendo em vista a necessidade de realização de uma visita em campo para análise detalhada”.

Jamais podemos esquecer que o novo Código de Processo Civil (CPC), com as suas modificações, trouxe consigo as principais características de uma realidade que vivemos, cuidando-se de mudanças profundas capazes de facilitar a organização das grandes demandas dos processos nos tribunais, tendo, por privilégio, buscar celeridade e facilidade nas resoluções de conflitos sociais. 

Como uma das principais mudanças do atual CPC, eis que a conciliação tem por função incentivar as partes a solucionar consensualmente os seus conflitos por intermédio de uma audiência antecipada, ao comparecerem a essa tentativa de acordo mediada por profissionais contratados pelos tribunais, os quais discutirão a possibilidade de findar o problema antes mesmo da instrução processual, desde que o autor e o réu expressem o interesse.

Sendo assim, considerando que tem havido o ajuizamento de ações contra moradores da Rio-Santos, deve-se, primeiramente, ser oportunizado às partes uma tentativa de conciliação com a possibilidade de, se for o caso, regularizar um eventual uso da faixa de domínio junto ao DNIT, ao invés de se impor a demolição através de uma liminar. E, caso a autarquia demandante se mantenha irredutível quanto à sua pretensão, meu entendimento é que, não sendo constatado o risco, a Justiça julgue improcedentes os pedidos formulados em tais demandas, tendo em vista a completa falta de razoabilidade dos pedidos e o desalinhamento destes com os princípios norteadores da minirreforma da Lei de Uso do Solo ocorrida em 2019.

Que haja mais bom senso na nossa cidade e no nosso país!

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