"Então, considerei outra vaidade debaixo do sol, isto é, um homem sem ninguém, não tem filho nem irmã; contudo, não cessa de trabalhar, e seus olhos não se fartam de riquezas; e não diz: Para que trabalho eu, se nego à minha alma os bens da vida? Também isto é vaidade e enfadonho trabalho [ou grave infortúnio]. Melhor é serem dois do que um, porque têm melhor paga do seu trabalho. Porque se caírem, um levanta o companheiro; ai, porém, do que estiver só; pois, caindo, não haverá quem o levante. Também, se dois dormirem junto, eles se aquentarão; mas um só como se aquentará? Se alguém quiser prevalecer contra um, os dois lhe resistirão; o cordão de três dobras não se rebenta com facilidade." (Eclesiastes 4:7-12; versão ARA)
Muitas reflexões podem ser extraídas da passagem bíblica transcrita acima. Há quem estabeleça aí um interessante paralelo entre a cooperação e o sentimento invejoso mencionado pelo autor no verso 4 do mesmo capítulo. É que, enquanto a inveja motiva o homem a buscar conquistas fúteis e vazias, muitas das vezes auto-destrutivas e até prejudiciais ao próximo, eis que o cooperativismo promove justamente o contrário ao resgatar o nosso verdadeiro sentido existencial.
De fato, a solidão faz com que as pessoas venham a colher as amarguras do isolamento. O dito popular brasileiro "antes só do que mal acompanhado" não seria a mais correta orientação do ponto de vista da Bíblia. Isto porque, conforme o texto, é recomendável que o sujeito esteja pelo menos em dupla para bem se proteger (v. 12). Quem se isola enfraquece, esfria, deixa de alcançar os melhores resultados e pode não mais se levantar caso tropece. Logo, o antídoto contra as más companhias seria cultivar as boas amizades pela convivência.
Também de acordo com a Bíblia, pode-se buscar no relato da criação da mulher a constatação da importância do companheirismo através da célebre frase "não é bom que o homem esteja só" (Gn 2:18). E, ao interpretar as Escrituras Sagradas, a mística judaica chegou a considerar o homem solteiro como um ser de "meio corpo" (Zohar) enquanto que para o Talmude a falta da esposa importaria na ausência da alegria e das bênçãos da vida (Iebamot 62). Daí o direcionamento dos antigos sábios judeus para o homem amar e honrar a sua mulher "mais do que a si mesmo".
Poderia o texto de Eclesiastes aplicar-se ao matrimônio? Confesso que não vejo problema algum sendo o que muitos pregadores já fazem quando ministram seus cursos para casais. No ano de 2006, quando vivíamos ainda na cidade serrana de Nova Friburgo, eu e Núbia tivemos uma lição nos Casados Para Sempre baseada na citação bíblica deste artigo, dentre outras passagens das Escrituras. Na própria apostila que recebemos na residência familiar dos líderes (onde as reuniões semanais ocorriam) ensinava ser Deus a "terceira dobra" do relacionamento a dois.
Uma outra interpretação também se mostra possível sem exclusão das demais. De acordo com o teólogo eritreu Tewoldemedhin Habtu da Igreja Metodista Wesleyana, os versículos bíblicos em estudo têm a ver com a vida em comunidade:
"O trabalho não tem sentido para a pessoa que vive sozinha (4:7-8). Dois é melhor do que um em todos os aspectos (4:9-11). Três é ainda melhor, pois o cordão de três dobras não se rompe com facilidade (4:12). Esses versículos contrastam a segurança e as bênçãos da companhia com os riscos e a dor da solidão. A cosmovisão africana baseia-se na vida comunitária. Isso se reflete nas várias versões do adágio: 'Eu sou, porque nós somos; e, uma vez que nós somos, então eu sou'. Por exemplo, o povo Akan de Gana sublinha a necessidade de cooperação, dizendo: 'Uma pessoa sozinha não pode construir uma cidade'" (Comentário bíblico africano. São Paulo: Mundo Cristão, 2010, pág. 819)
Inegavelmente que uma pessoa sozinha não pode construir uma cidade e também não consegue edificar uma congregação. Lembremos que o Senhor Jesus fez da sua Igreja um verdadeiro projeto coletivo e, quando o Mestre enviou os discípulos para pregarem pelos povoados de Israel, mandou-os seguir em duplas (Lc 10:1). Deste modo, jamais poderá existir o ministério do "eu sozinho". Precisamos sempre uns dos outros.
Meus amados, estamos hoje numa época em que a cultura ocidental enfraqueceu-se pela falta do companheirismo e deterioração das relações familiares. Talvez em nenhuma outra época a construção civil tenha vendido tantos apartamentos para solteiros como na atualidade como pude assistir esta semana na TV durante o programa Mais Você da apresentadora Ana Maria Braga (ler a matéria Estúdios: opção por apartamentos pequenos é realidade em São Paulo). Só que esse isolamento pode não fazer bem e transformar o ser humano em refém das suas ambições egoístas e dos próprios desajustes de convivência, os quais erroneamente preferimos evitar do que tratá-los. Por isso, eu diria que estamos assistindo a fragmentação da sociedade brasileira.
Termino esse artigo acrescentando que não podemos confundir os momentos de solidão oracional com a ausência de companheirismo. Passar um tempo a sós com o Pai Celeste, na na busca de um encontro com o nosso Criador, certamente compõe a caminhada espiritual que fazemos. Contudo, manter o relacionamento de uns para com os outros significa viver neste mundo com propósito. Sem tal comunhão, encontramos solidão e isolamento, o que não creio ser o melhor para a humanidade.
Um ótimo dia para todos!
OBS: Ilustração disponível na internet como papel de parede. Extraí a imagem de http://wallpaper4god.com/pt/melhor-serem-dois-do-que-um/
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