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domingo, 21 de dezembro de 2025

Axé, fé e liberdade artística: um debate que pede diálogo público



Nos últimos dias, a cantora Claudia Leitte passou a ocupar o centro de um debate público que extrapola o universo artístico e alcança temas sensíveis da vida social brasileira, como liberdade religiosa, patrimônio cultural e intolerância simbólica. No dia 02 de dezembro de 2025, o Ministério Público do Estado da Bahia ajuizou uma Ação Civil Pública contra a artista, registrada sob o nº 8233054-42.2025.8.05.0001, distribuída para a 7ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Salvador, atribuindo-lhe a prática de intolerância religiosa em razão de alterações feitas, em apresentações públicas, em letras tradicionais do axé music, especialmente aquelas que fazem referência a orixás e elementos das religiões de matriz africana.

O caso rapidamente ganhou destaque na mídia e, segundo amplamente noticiado por veículos como a Gazeta do Povo e outros portais de alcance nacional, o Ministério Público sustenta que a substituição desses termos por referências cristãs — como o uso do nome “Yeshua” em lugar de menções a Iemanjá — não se trataria de um gesto isolado, mas de uma conduta reiterada que contribuiria para o apagamento simbólico de tradições afro-brasileiras. Na ação, o MP requer não apenas indenização por danos morais coletivos, no valor de R$ 2 milhões, mas também o reconhecimento judicial da prática de intolerância religiosa, a imposição de obrigações de não fazer relacionadas à alteração de letras tradicionais e a adoção de medidas de caráter educativo e reparatório.

A defesa da cantora, por sua vez, sustenta que as alterações refletem suas convicções religiosas pessoais e estariam amparadas pela liberdade de expressão artística e pela liberdade de crença, ambas asseguradas pela Constituição Federal. Para esse campo de interpretação, punir ou restringir esse tipo de manifestação poderia abrir um precedente perigoso de censura, especialmente em um país plural e marcado pela diversidade religiosa.

Cumpre registrar, ainda, um aspecto processual relevante. Embora a existência da ação tenha sido amplamente divulgada e a defesa da artista já tenha se manifestado no espaço público, tais manifestações extraprocessuais não produzem efeitos jurídicos diretos no processo. Até o momento, trata-se de uma demanda em fase inicial, sem notícia de decisão judicial de mérito ou mesmo de algum despacho amplamente divulgado, o que reforça que o debate se desenvolveu socialmente antes de qualquer pronunciamento efetivo do Judiciário.

Independentemente do desfecho jurídico que venha a ter, a iniciativa do Ministério Público produziu um fato incontornável: trouxe à arena pública um debate sensível sobre cultura, religião, liberdade artística e memória social. Diante disso, talvez o maior desafio não seja apenas decidir quem tem razão no plano estritamente jurídico, mas compreender como lidar, enquanto sociedade plural, com conflitos simbólicos que atravessam identidades históricas distintas.

É inegável que o axé music não se resume a um gênero musical comercial. Ele nasce e se desenvolve profundamente conectado às tradições afro-brasileiras, às religiões de matriz africana e à história de resistência cultural de populações que, por séculos, sofreram perseguição, invisibilização e apagamento simbólico. Nesse contexto, alterações recorrentes em letras consagradas — sobretudo quando suprimem referências centrais dessa cosmovisão — podem ser percebidas, por parte significativa da sociedade, como uma forma de esvaziamento cultural, ainda que não haja intenção explícita de ofensa.

Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que a liberdade de expressão artística e a liberdade religiosa constituem pilares do Estado Democrático de Direito. A criação artística sempre envolveu releituras, ressignificações e escolhas pessoais, inclusive motivadas por convicções de fé. Reduzir esse aspecto a uma leitura exclusivamente punitiva ou moralizante pode empobrecer o debate e gerar efeitos indesejados, como a sensação de censura ou perseguição religiosa, especialmente em um contexto social já profundamente polarizado.

É justamente nesse ponto que se abre uma alternativa mais fecunda: deslocar o centro da discussão para fora do Judiciário e dos limites estritos de um rito procedimental. O debate público, mediado por iniciativas educativas, culturais e institucionais, permite uma escuta mais ampla, menos adversarial e mais democrática. Nele, artistas, comunidades religiosas, pesquisadores, produtores culturais e o público podem expor suas percepções, dores, expectativas e limites, contribuindo para uma compreensão social mais amadurecida.

Valorizar o diálogo público não significa relativizar a importância do combate à intolerância religiosa. Ao contrário: significa reconhecê-lo como um processo pedagógico contínuo, que se fortalece quando a sociedade compreende as raízes culturais do axé, reconhece a legitimidade das tradições afro-brasileiras e, ao mesmo tempo, aprende a conviver com a diversidade de crenças e expressões individuais.

Reunir opiniões divergentes — de artistas, juristas, líderes religiosos e do público — não é sinal de fragilidade institucional, mas de vitalidade democrática. É nesse espaço de tensão criativa que o pluralismo religioso e cultural pode aprender a coexistir, não pela imposição, mas pelo reconhecimento mútuo, pelo respeito e pela educação.

Mais do que decidir um caso específico, o desafio colocado é o de formar consciências, fortalecer vínculos culturais e construir caminhos de convivência em uma sociedade diversa. E esse é um trabalho que vai muito além dos tribunais.


📷: Rovena Rosa / Agência Brasil

Verão



Inspirado no Verão de Giuseppe Arcimboldo — em que a estação aparece como rosto feito de frutos maduros —, a estação no Brasil e no Hemisfério Sul também pode ser lida como um retrato coletivo: uma soma de tempos, afetos, excessos e promessas.


Aqui, o verão começa em dezembro, quando o ano ainda pulsa com as ruas lotadas de consumidores indo às compras. É estação que não chega sozinha: vem acompanhada do encerramento do calendário escolar, das férias, das malas improvisadas, das estradas cheias, dos aeroportos lotados. O calor não é apenas climático; é social. O país desacelera em alguns setores e acelera em outros. A rotina se reorganiza.


O verão brasileiro é inseparável do Natal e do Ano Novo — datas que, sob o sol forte, ganham outro sentido. As mesas se abrem, as famílias se reúnem, mesmo entre ausências e silêncios. Há reencontros, há conflitos, há tentativas de recomeço. Entre rabanadas e frutas geladas, o ano se despede e outro se anuncia, como se o calor ajudasse a dissolver o que ficou pesado demais.


Janeiro chega com cara de promessa. Para muitos, é tempo de viagem, de praia, de pés na areia e sal na pele. Para outros, é tempo de trabalho redobrado, de cidades vazias e transporte irregular. O verão, como em Arcimboldo, é abundante — mas desigual. Enquanto uns desfrutam, outros resistem às ondas de calor, às contas altas, à falta de sombra e de água.


Fevereiro traz o retorno gradual da rotina e, com ele, o Carnaval. A estação então se torna corpo em movimento: música, rua, suor, fantasia, crítica e alegria misturadas. O verão brasileiro é também expressão cultural, ocupação do espaço público, invenção coletiva de felicidade — ainda que breve.


Em março, o verão se despede oficialmente. As aulas retornam, o calendário volta a se impor, mas o calor insiste. Ele se prolonga até abril, lembrando que os ciclos naturais nem sempre obedecem às datas formais. Como na vida, as transições são difusas.


E quando as primeiras chuvas mais constantes chegam, ecoam versos conhecidos:

São as águas de março fechando o verão…

A canção de Tom Jobim traduz o sentimento nacional: o verão não termina de forma abrupta; ele se dissolve. Leva consigo excessos, cansaços, amores rápidos, promessas não cumpridas — e deixa a expectativa de recomeço.


Assim como no quadro de Arcimboldo, o verão no Brasil é feito de múltiplos elementos: natureza, tempo, corpo, política, afeto e memória. É estação de plenitude, mas também de desgaste. De alegria e de alerta. Um rosto coletivo composto de sol, suor, música, festa e desigualdade — belo, intenso e, inevitavelmente, passageiro.

MPF Processa a União por Ataques à Memória de João Cândido: Um Marco no Direito à Memória no Brasil



No final deste ano de 2025, o Ministério Público Federal (MPF) tomou uma iniciativa sem precedentes ao ajuizar uma ação civil pública contra a União, questionando manifestações oficiais da Marinha do Brasil que, segundo o órgão ministerial, atacaram a memória histórica de João Cândido Felisberto — líder da Revolta da Chibata, um dos episódios mais emblemáticos da luta contra a violência institucional e o racismo no país.

A ação, ainda no início de seu trâmite (sem contestação apresentada até o momento), está registrada sob número 5138220-44.2025.4.02.5101 e demanda, sobretudo, a responsabilização civil da União por dano moral coletivo, com pedido de indenização de R$ 5 milhões, cujo montante deve ser aplicado exclusivamente em projetos de valorização da memória de João Cândido e de enfrentamento ao racismo estrutural.


O Caso: Do Debate Legislativo à Justiça Federal

A controvérsia teve origem em abril de 2024, quando o comandante da Marinha, em carta à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, tomou posição contrária à proposta de incluir João Cândido no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria – o registro simbólico das figuras que o Estado brasileiro reconhece como essenciais para sua história. Nesta carta, o militar qualificou a Revolta da Chibata como uma “deplorável página da história nacional”, atribuindo adjetivações negativas aos revoltosos.

Para o MPF, a postura oficial não se limita a uma opinião histórica: trata-se de um ato institucional que desabona um personagem já anistiado e cuja história expressa valores democráticos e de resistência contra desigualdades. Ao fazer isso, a Marinha — e por extensão o Estado — estaria violando normas constitucionais, tratados internacionais e a própria lei de anistia que restabeleceu a honra de João Cândido e seus companheiros.


Quem foi João Cândido e a Revolta da Chibata?

João Cândido Felisberto é uma das figuras mais relevantes da história do Brasil republicano. Em novembro de 1910, ele liderou a Revolta da Chibata, um movimento de marinheiros contra as práticas de punição corporal — em particular a chibata — que eram aplicadas de forma degradante, desumana e desproporcional, afetando principalmente soldados negros e pobres.

Os revoltosos tomaram o controle de navios estratégicos da Marinha na Baía de Guanabara e exigiram o fim dos castigos físicos e a melhoria das condições de trabalho; após negociações, essas exigências foram formalmente aceitas. No entanto, dias depois, muitos participantes foram presos, perseguidos e marginalizados, e João Cândido passou os anos seguintes longe de qualquer reconhecimento oficial.

Com o passar do tempo, sua luta foi sendo resgatada pela historiografia, pela cultura popular — inclusive no samba e em livros — e pelo movimento negro brasileiro. Experiências coletivas de resistência ganharam novo significado, e Cândido passou a ser visto como um símbolo de luta contra a violência institucional e de combate ao racismo estrutural.


O Direito à Memória: Um Conceito Jurídico em Jogo

O cerne da ação do MPF não se resume à discussão sobre heroísmo ou glória histórica. Trata-se de direito constitucional à memória e à preservação da dignidade histórica de agentes coletivos e individuais que contribuíram para a promoção de direitos fundamentais.

No entendimento do MPF, a manifestação oficial da Marinha deslegitima esse direito quando desqualifica um personagem cuja memória foi formalmente alçada à condição de reparação histórica pela própria lei de anistia — Lei nº 11.756/2008 — o que confere ao debate uma dimensão jurídica que ultrapassa o simples jogo de opiniões.

Além disso, a ação aponta que as declarações institucionais podem violar:


  • Princípios constitucionais relacionados à dignidade da pessoa humana e ao pluralismo de ideias;
  • Tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil;
  • Normas de proteção ao patrimônio histórico-cultural, quando o Estado se recusa a reconhecer a relevância de uma narrativa que faz parte de sua própria formação social.


Obstáculos Jurídicos à Vista

Para que o MPF alcance êxito, o processo terá de enfrentar e superar algumas questões decisivas:


1. Liberdade de expressão institucional x legalidade de atos estatais
A União poderá sustentar que uma instituição pública tem o direito de manifestar sua interpretação histórica. O desafio será demonstrar que, quando esse discurso parte de um órgão oficial e impacta a honra histórica de quem foi legalmente anistiado, ele ultrapassa a fronteira da mera opinião e se configura em dano moral coletivo.


2. Prova do nexo causal com o dano moral coletivo
O MPF terá de demonstrar que a divulgação de documentos oficiais com expressões depreciativas gerou ou pode gerar um impacto social negativo envolvendo a memória coletiva, e que esse impacto exige reparação jurídica.


3. Interpretação da lei de anistia de 2008
A defesa da memória de João Cândido se apoia não só no texto da lei, mas também no seu espírito reparador e simbólico — o que implica que a própria lei tenha efeitos interpretativos mais amplos do que uma simples declaração formal de anistia.


Implicações Políticas e Culturais

Mais do que um embate judicial, a ação do MPF insere-se em um debate mais amplo sobre quem escreve a história do Brasil e de que maneira se reconhecem as lutas coletivas por direitos. Isso tem reflexos diretos sobre a maneira como escolas, instituições públicas e a sociedade civil compreendem episódios históricos que envolvem desigualdades raciais e relações de poder.

Reconhecer ou negar a importância de figuras como João Cândido — no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria ou no imaginário coletivo — simboliza muito mais do que um título honorífico: é reconhecer que o Estado brasileiro tem a responsabilidade de enfrentar seu passado de violência e discriminação, não apenas de celebrá-lo quando conveniente.

Ao final, a ação do MPF pode abrir caminho para que o direito à memória histórica seja tratado como um direito fundamental concreto, e não como tema acessório ou meramente cultural.


📌 Nota pessoal do autor

Vale lembrar, como destacado em meu artigo do mês passado (Novembro de 1910: quando a chibata virou história), que meu bisavô, Francisco Ancora da Luz (1883 - 1951), foi contemporâneo de João Cândido, vivendo na mesma época dessas experiências dramáticas e formativas do Brasil republicano — um vínculo geracional que reforça a importância de resguardar a memória daqueles que resistiram, lutaram e ensinaram, mesmo na adversidade, sobre dignidade e direitos.


📷: Foto do Marinheiro João Cândido no Jornal Gazeta de Notícias, de 31 de dezembro de 1912. Imagem de domínio público, extraída da Wikipedia.

A EC 138/2025 e os professores que pediram exoneração: efeitos jurídicos, limites e caminhos possíveis



No artigo anteriormente publicado neste blogCongresso promulga emenda que amplia possibilidade de acumulação de cargos por professores — foi abordada a relevância da Emenda Constitucional nº 138/2025, que alterou o artigo 37 da Constituição Federal para ampliar as hipóteses de acumulação de cargos por docentes da educação pública, desde que haja compatibilidade de horários e observância do teto constitucional.

A promulgação da emenda foi recebida com alívio por muitos professores e redes de ensino, especialmente em um contexto de escassez de profissionais qualificados no magistério. No entanto, a mudança constitucional também reacendeu um debate sensível: o que fazer em relação aos professores que, antes da EC 138/2025, não tiveram outra alternativa senão pedir exoneração de um de seus cargos, diante de interpretações restritivas sobre acumulação, muitas vezes impulsionadas por cruzamentos de dados realizados pelos Tribunais de Contas?


A situação anterior e o dilema vivido por professores

Antes da EC 138/2025, a redação do artigo 37, XVI, da Constituição gerava insegurança jurídica. A noção de “cargo técnico ou científico”, quando acumulado com o de professor, sempre foi objeto de interpretações divergentes. Na prática, professores aprovados em concursos públicos acabaram sendo pressionados a optar por um dos vínculos, sob risco de processos administrativos, devolução de valores ou imputações pelos órgãos de controle.

Em muitos casos, o pedido de exoneração não decorreu de uma escolha livre, mas de um contexto de forte constrangimento institucional, em que a alternativa apresentada era sair voluntariamente ou enfrentar sanções mais gravosas. Esse histórico explica por que a EC 138/2025, embora não trate expressamente do passado, provocou questionamentos legítimos sobre seus efeitos indiretos em situações pretéritas.


Argumentos contrários: limites constitucionais e segurança jurídica

Do ponto de vista jurídico, é preciso reconhecer os argumentos contrários a qualquer tentativa de correção automática dessas exonerações. Emendas constitucionais, como regra, produzem efeitos para o futuro, não desfazendo atos administrativos já consumados. Uma norma que determinasse, de forma genérica, a reintegração automática de servidores exonerados poderia violar princípios como:


  • a irretroatividade das normas;
  • o concurso público;
  • a segurança jurídica;
  • a separação de poderes.


Além disso, soluções amplas e automáticas tenderiam a gerar alto impacto orçamentário e forte resistência dos Tribunais de Contas, aumentando o risco de judicialização e de declaração de inconstitucionalidade.


Argumentos favoráveis: mudança constitucional e revisão de atos administrativos

Por outro lado, há argumentos relevantes em favor da reavaliação desses casos, desde que feita com cautela. A EC 138/2025 deixou claro que a interpretação anteriormente aplicada era excessivamente restritiva e não correspondia à finalidade constitucional de valorização do magistério.

Nesse contexto, sustenta-se que a exoneração ocorrida exclusivamente em razão da antiga leitura do texto constitucional pode ser objeto de revisão administrativa, não para garantir direitos automáticos, mas para verificar se:


  • a exoneração decorreu efetivamente da questão da acumulação;
  • atualmente haveria compatibilidade de horários;
  • o cargo ainda existe e atende ao interesse público;
  • a Administração possui necessidade de recomposição de seu quadro docente.


Não se trata de aplicar a emenda retroativamente, mas de reexaminar atos administrativos à luz de um novo parâmetro constitucional, reconhecendo que muitos deles foram praticados em um ambiente de insegurança jurídica.


O papel dos estados e municípios: caminhos legislativos possíveis

Diante desse cenário, surge uma possibilidade institucionalmente mais segura: a atuação das Câmaras Municipais e das Assembleias Legislativas na elaboração de leis que não imponham soluções automáticas, mas criem procedimentos de revisão individualizada das exonerações ocorridas em determinado período.

Para evitar a inconstitucionalidade, essas normas podem:


  • autorizar expressamente a Administração a reanalisar pedidos de exoneração relacionados à acumulação de cargos;
  • exigir requerimento do interessado, com comprovação documental;
  • estabelecer critérios objetivos de análise;
  • vedar efeitos financeiros retroativos;
  • condicionar eventual retorno ao interesse público e à existência do cargo.


Importante destacar que não se propõe qualquer forma de indenização, mas justamente uma alternativa administrativa que reduza a judicialização em massa, oferecendo uma resposta institucional mais racional e equilibrada.


Uma resposta ao apagão no magistério

Além do aspecto jurídico, há um dado concreto que não pode ser ignorado: o apagão no magistério, especialmente em áreas estratégicas e em regiões mais vulneráveis. Professores experientes, já concursados e conhecedores da rede pública, foram afastados do serviço não por falta de capacidade ou compromisso, mas por um desenho constitucional que agora foi corrigido.

Criar mecanismos legais para revisar essas exonerações, com responsabilidade e respeito à Constituição, não é privilégio, mas uma política pública inteligente de valorização da educação e recomposição de quadros.

A EC 138/2025 abriu uma porta. Cabe agora aos entes federativos decidir se irão fechá-la com receio do passado ou utilizá-la, com prudência, para enfrentar um dos maiores desafios atuais da educação pública brasileira.

Natal: celebrar a vida, a solidariedade e a "humanização de Deus"

 

Adoração dos Magos, de Bartolomé Esteban Murillo


O teólogo Leonardo Boff, em seu artigo “Natal: a humanização de Deus”, nos lembra que o Natal é muito mais do que luzes, presentes e ceias: é o momento em que Deus assume nossa condição humana, se aproxima de nós e nos revela a dignidade de cada pessoa.

Ao nascer na humildade de uma estrebaria, ao lado de Maria e José, Deus nos mostra que a verdadeira grandeza está na solidariedade, no cuidado com os vulneráveis e na proximidade com quem mais precisa.

Os presentes dos magos — ouro, incenso e mirra — carregam símbolos que vão muito além da narrativa bíblica. O ouro representa a realeza ética, um convite a liderar com justiça e responsabilidade; o incenso remete à divindade que se manifesta na vida humana; e a mirra nos lembra que a verdadeira missão envolve entrega e compromisso, mesmo diante do sofrimento. Esses símbolos nos inspiram a refletir sobre nossas escolhas, nossas relações e a missão que cada um de nós tem na sociedade.


O Natal visto pela ciência

A mensagem de Boff dialoga com a ciência de maneira profunda:


  • Psicologia: promove empatia, solidariedade e reconhecimento da dignidade humana, fortalecendo vínculos familiares e comunitários.
  • Sociologia: mostra como tradições e práticas coletivas, como o Natal, fortalecem coesão social, inclusão e atenção aos vulneráveis.
  • Política: princípios éticos e justiça social podem transformar estruturas e garantir que todos sejam respeitados e amparados.


O Brasil e a humanização social


A Adoração dos Pastores, de Gerard van Honthorst

Nossa legislação, políticas públicas e programas sociais existem para proteger e incluir, mas muitas vezes enfrentam burocracia e desigualdade de acesso. O INSS cumpre papel essencial ao garantir direitos econômicos, mas atrasos e dificuldades comprometem a função humanizadora. A Justiça protege direitos, mas lentidão e disparidade de tratamento ainda mostram lacunas.

Como sociedade, convivemos com desigualdade, violência e individualismo, mas ações voluntárias e comunitárias demonstram que é possível agir com solidariedade e ética.


O papel das igrejas cristãs 

As igrejas e grupos religiosos cristãos sempre tem algo a contribuir para a celebração real da vida, a solidariedade e a humanização, muito embora muitas vezes todos possam acabar se afastando da essência da Evangelho.

  • Católicos: Pastoral social, cuidado com os pobres e atenção às comunidades refletem a mensagem de Boff, apesar do ritualismo às vezes se sobrepor à ação social.
  • Evangélicos: Amor e projetos comunitários refletem solidariedade, mas o foco em prosperidade ou crescimento institucional pode reduzir a prática social.
  • Espíritas kardecistas: Caridade e ética social estão alinhadas com Boff, ainda que o foco na evolução individual nem sempre gere ação coletiva estruturada.
  • Esotéricos cristãos: Valorizam experiência pessoal do divino, mas a prática social organizada nem sempre é prioridade.


Relações pessoais, familiares e conjugais

Cada abraço, conversa, gesto de carinho, reunião familiar ou ceia compartilhada é expressão do cuidado e da atenção ao outro. Nas relações com o cônjuge e com os entes queridos mais próximos, a mensagem de Boff inspira humildade, entrega e generosidade, mostrando que o espírito do Natal se manifesta não apenas em datas comemorativas, mas no dia a dia.


Celebrar o Natal todos os dias

Celebrar o Natal não se limita a acender luzes ou trocar presentes. É acolher o outro, lutar por justiça e praticar solidariedade — nas relações pessoais, familiares, institucionais e sociais. É transformar o espírito do Natal em ações concretas todos os dias, vivendo os princípios representados pelo ouro, pelo incenso e pela mirra: liderança ética, espiritualidade ativa e entrega comprometida.

Que este Natal nos inspire a praticar a alegria, a compaixão e a solidariedade ao longo de todo o ano, valorizando tradições, celebrando a vida e construindo uma sociedade mais humana, justa e próxima daquilo que Boff nos ensina: um Deus que se humaniza e nos chama a fazer o mesmo.


📝 Nota explicativa sobre “humanização de Deus”

Quando Boff fala em “humanização de Deus”, ele não quer dizer que Deus se torna limitado ou menor. Trata-se do mistério da encarnação: Deus se faz humano em Jesus, vivendo nossas fragilidades, alegrias e sofrimentos, e mostrando que cada pessoa possui dignidade, valor e capacidade de amar e transformar o mundo. É um convite para reconhecermos a presença do divino em nossa própria humanidade e nos outros.

sábado, 20 de dezembro de 2025

Endossar ações externas contra a Venezuela é um precedente perigoso



Neste sábado, dia 20 de dezembro de 2025, a 67ª Cúpula do Mercosul, realizada em Foz do Iguaçu (Brasil), foi palco de uma das mais profundas divergências diplomáticas da história recente da América Latina. 

Durante o evento, o presidente da Argentina, Javier Milei, surpreendeu colegas e analistas ao expressar apoio explícito à pressão política e militar exercida pelos Estados Unidos e pelo presidente Donald Trump contra a Venezuela. Ele afirmou que “a Argentina saúda a pressão dos Estados Unidos e de Donald Trump para libertar o povo venezuelano” e que “o tempo de ter uma abordagem tímida nessa matéria acabou”.

Essa posição, longe de ser apenas retórica, traz riscos profundos à soberania dos países latino‑americanos, à estabilidade regional e ao respeito ao direito internacional, incluindo tratados relacionados ao Direito do Mar, e precisa ser debatida com seriedade.


1. O que foi dito em Foz do Iguaçu: um rompimento com tradições diplomáticas regionais

No auge da cúpula, Milei aproveitou o microfone para não apenas criticar duramente o governo de Nicolás Maduro — a quem qualificou como uma “ditadura atroz e narcoterrorista” — mas também para pedir que outros membros do Mercosul se alinharem à posição de Washington para pressionar Caracas.

Essa fala contrastou fortemente com a abordagem de outros líderes presentes. O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, advertiu que qualquer intervenção militar seria uma catástrofe humanitária e um precedente perigoso para toda a América do Sul.

O discurso de Milei sinaliza um deslocamento da política externa argentina tradicional, que historicamente prezou pela não intervenção e pelo respeito à soberania dos povos latino‑americanos — mesmo ao criticar regimes autoritários. Ao endossar uma pressão externa que pode incluir ações militares ou bloqueios econômicos, Milei rompe com esse princípio.


2. Oposição e opinião pública na Argentina

Dentro da Argentina, a fala de Milei não foi recebida de forma unânime. A política doméstica do presidente já é alvo de forte polarização e críticas por parte de grande parte da sociedade e da oposição política. Pesquisas de opinião recentes mostram que a avaliação sobre o governo de Milei está quase empatada entre aprovação e desaprovação, demonstrando que os argentinos estão divididos quanto à condução do país.

Para além dessa divisão geral, a oposição — em grande parte liderada pelo peronismo e outras forças de centro‑esquerda — tem criticado o alinhamento explícito de Milei com Washington, argumentando que sua política externa está excessivamente subordinada a interesses externos e pode expor a Argentina a conflitos e dependências que não refletem os interesses nacionais de longo prazo.


3. Reações regionais: Brasil, Colômbia e México


Brasil

O presidente Lula fez um posicionamento diametralmente oposto ao de Milei na mesma cúpula. Lula defendeu o diálogo e alertou para os riscos de militarização e intervenção estrangeira, insistindo que isso poderia ser uma “catástrofe humanitária” e um exemplo perigoso para outras crises na América Latina.


Colômbia

Embora o governo colombiano sob Gustavo Petro não tenha se alinhado formalmente com as posições de Lula no Mercosul (já que a Colômbia não é membro pleno do bloco), a tradição diplomática colombiana recente tem sido a de rejeitar intervenções militares externas em assuntos internos de outros Estados e de defender que os problemas da Venezuela devem ser resolvidos por venezuelanos. Isso se alinha com sua política de soberania e diálogo na região.


México

A presidente mexicana Claudia Sheinbaum também se posicionou claramente contra qualquer intervenção externa ou pressão militar. Ela apelou às Nações Unidas para que atuem como mediadoras e que se evite derramamento de sangue, reforçando princípios constitucionais mexicanos de não intervenção, não ingerência estrangeira e autodeterminação dos povos.


Esse posicionamento destaca uma diferença importante: mesmo líderes críticos ao regime de Maduro rejeitam soluções que envolvam coerção militar ou violações de soberania externa.


4. Soberania, Direito do Mar e implicações jurídicas

O apoio de Milei às ações dos EUA — incluindo motes que podem embasar bloqueios ou uso de força em águas internacionais — levanta sérias questões jurídicas:


Direito do Mar

As Convenções das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS) garantem a liberdade de navegação, a integridade das zonas econômicas exclusivas e o uso pacífico dos mares, limitando a possibilidade de que operações militares ou bloqueios sejam legalizados sem quadrantes claros de legalidade internacional. Bloquear petroleiros ou interceptar embarcações pode ser visto como violação dessas normas e gerar repercussões jurídicas.


Violação de soberania

A pressão externa que se traduz em blocos navais ou ações militares não consensuais, sem autorização de organismos multilaterais como a ONU, pode configurar uma violação direta da soberania venezuelana e criar precedente perigoso para toda a região.


Possíveis condutas criminosas

A utilização de força contra embarcações ou infrações de tratados internacionais pode ser examinada à luz de normas de responsabilidade internacional e até de crimes internacionais, caso haja danos a civis ou danos indiscriminados a propriedade marítima sem base legal adequada.

Ao endossar tais ações, líderes estrangeiros legitimam de forma implícita condutas que desafiam normas construídas ao longo de décadas de esforços multilaterais.


5. O perigo de precedentes intervencionistas

Quando um líder regional apoia abertamente medidas de pressão que podem incluir ações militares ou bloqueios, isso mina o princípio de não‑intervenção que é a base do sistema interamericano moderno. Permitir — ou celebrar — que potências externas tomem iniciativa de uso da força ou pressão coercitiva contra um Estado soberano abre a porta para:


  • Normalização de interferência em assuntos internos de outros Estados;
  • Debilitação de mecanismos internacionais de resolução de conflitos;
  • Riscos de escalada de conflitos armados na região;
  • Fragilização de blocos regionais como Mercosul ou CELAC.


Esse precedente não afeta apenas a Venezuela: ele pode ser invocado em outras crises futuras, destruindo os pilares da integração regional.


6. Conclusão: por uma América Latina soberana e unida

O discurso de Javier Milei na Cúpula do Mercosul não pode ser visto como uma mera discordância diplomática. Ele representa uma ruptura ideológica e estratégica com princípios fundamentais que sustentaram a política externa latino‑americana nas últimas décadas: não intervenção, respeito à soberania e solução pacífica de conflitos.

Enquanto Brasil, México e Colômbia reforçam a importância de diálogo, mediação e respeito à autodeterminação, o apoio de Milei à pressão dos Estados Unidos sobre a Venezuela acende um alerta para toda a região: aceitar políticas intervencionistas como válidas é abrir mão de nossa independência.

A América Latina enfrenta desafios comuns — como desigualdade, mudança climática, insegurança e instabilidade econômica. Fortalecer a integração econômica e política, baseando‑se em respeito mútuo, solidariedade e multilateralismo, é vital para defender nossos interesses verdadeiros.

É essencial que os países da América Latina reforcem blocos regionais, mecanismos de cooperação e fóruns multilaterais que preservem a soberania dos Estados, defendam a democracia e evitem que disputas geopolíticas sejam resolvidas por meio de coerção externa. Só assim poderemos avançar como uma região realmente unida, soberana e democrática.

Congresso promulga emenda que amplia acúmulo de cargos para professores e oferece novo instrumento contra o apagão no magistério



O Congresso Nacional promulgou recentemente a Emenda Constitucional nº 138/2025, uma medida que promete impactar positivamente a carreira dos professores da rede pública, ao mesmo tempo em que oferece uma contribuição para reduzir o déficit de docentes conhecido como “apagão no magistério”.


O que muda com a emenda?

Até então, a Constituição Federal permitia que professores acumulassem dois cargos de magistério ou um cargo de professor com outro cargo técnico ou científico, desde que respeitados horários compatíveis e limites remuneratórios. A nova emenda amplia essas possibilidades, permitindo que um professor possa acumular seu cargo docente com qualquer outro cargo público remunerado, mantendo sempre a compatibilidade de horários e respeitando o teto constitucional de salários.

Tecnicamente, a alteração foi feita no artigo 37, inciso XVI, alínea “b”, que antes limitava o acúmulo remunerado do cargo de professor a outro cargo técnico ou científico. Com a nova redação, qualquer cargo público remunerado pode ser acumulado, oferecendo maior segurança jurídica e estabilidade para os docentes.

Segundo parlamentares que defenderam a medida, a emenda oferece segurança jurídica e estabilidade aos professores, que agora poderão conciliar a carreira docente com outras funções públicas sem receio de infringir normas legais. Além disso, a medida amplia as oportunidades de renda e incentiva a permanência de profissionais no magistério.


Benefícios para os professores

A medida representa um avanço significativo para os docentes. Ela permite que:


  • Professores mantenham sua carreira na educação pública mesmo quando assumem outro cargo público;
  • Possam aumentar sua renda sem precisar abandonar a sala de aula;
  • Tenham mais previsibilidade e segurança jurídica, evitando litígios e questionamentos sobre o acúmulo de funções.


Essa maior estabilidade e atratividade pode contribuir para reduzir a evasão da carreira docente, um fator que historicamente contribui para a escassez de profissionais em determinadas regiões e disciplinas.


Contribuição para o combate ao "apagão no magistério"

O Brasil enfrenta um déficit significativo de professores, especialmente em áreas remotas, disciplinas específicas como matemática, física e química, e níveis como educação infantil e ensino fundamental. Estimativas recentes indicam que, se mantido o ritmo atual de formação e ingresso de professores, até 2040 poderão faltar cerca de 235 mil docentes para atender à demanda educacional.

A emenda aprovada pelo Congresso pode atenuar esse problema, pois ajuda a reter professores na carreira e aumentar a atratividade do magistério. Ao permitir que os docentes conciliem o ensino com outro cargo público remunerado, a medida reduz a saída de profissionais da educação e oferece uma forma de manter mais professores ativos nas salas de aula.


Limites da medida e a necessidade de ações estruturais

Apesar do impacto positivo, é importante destacar que o “apagão no magistério” é um problema estrutural. A emenda não resolve questões como:


  • Baixos salários em algumas regiões e disciplinas;
  • Infraestrutura insuficiente nas escolas;
  • Falta de valorização e formação contínua de professores;
  • Distribuição desigual de docentes entre regiões e redes de ensino.


Para uma solução mais completa, é fundamental que políticas públicas complementares sejam implementadas, tais como:


  • A implantação efetiva do piso salarial nacional do magistério, garantindo remuneração digna;
  • Investimentos em condições de trabalho, infraestrutura escolar e recursos didáticos;
  • Programas de formação e valorização docente, incentivando a entrada de novos profissionais na carreira e reduzindo a evasão.


Somente com a combinação dessas medidas estruturais será possível enfrentar de forma consistente o déficit de professores e assegurar educação de qualidade para todos os estudantes brasileiros.


Conclusão

A promulgação da Emenda Constitucional nº 138/2025 representa um avanço relevante para a carreira docente e oferece um instrumento concreto para atenuar o apagão no magistério. Contudo, é fundamental compreender que essa medida é apenas uma parte da solução. A valorização integral dos professores, com salários justos, melhores condições de trabalho e políticas de formação e permanência, continuará sendo essencial para garantir o futuro da educação pública no Brasil.


📝Nota: A promulgação da Emenda Constitucional nº 138/2025 também traz implicações para o planejamento municipal. Com a possibilidade de acumular cargos, os municípios precisarão atualizar a gestão de pessoal, garantindo compatibilidade de horários e controle sobre a remuneração. Ao mesmo tempo, a medida oferece maior previsibilidade para reduzir o déficit de professores, permitindo melhor planejamento da equipe docente. No entanto, ela não substitui a necessidade de políticas estruturais, como valorização salarial, boas condições de trabalho e programas de formação continuada, essenciais para enfrentar de forma consistente o apagão no magistério.