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sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

O que a pesquisa do Datafolha realmente diz — e o que ela não diz



A recente pesquisa do Datafolha, amplamente repercutida na imprensa, trouxe números que à primeira vista parecem simples: mais brasileiros se identificam como de direita do que de esquerda. A partir disso, nos dias do Natal, muitas manchetes sugeriram — explicitamente ou nas entrelinhas — que esse dado poderia representar um ambiente desfavorável ao governo Lula ou até um indício de dificuldades eleitorais futuras.

No entanto, pesquisas de opinião não falam sozinhas. Elas precisam ser lidas com cuidado, contexto e método. Quando isso não acontece, os dados deixam de informar e passam a confundir. Este artigo propõe justamente o contrário: usar a pesquisa como ponto de partida para reflexão, não como sentença política.


O que exatamente o Datafolha perguntou?

A pesquisa não perguntou em quem o entrevistado votaria nem o que ele entende, em termos conceituais, por direita ou esquerda. O que foi feito foi uma autodeclaração ideológica em uma escala de 1 a 7, em que:


  • 1 representava a extrema esquerda;
  • 7 representava a extrema direita;
  • os valores intermediários indicavam posições mais próximas do centro.


Trata-se, portanto, de uma percepção subjetiva do entrevistado sobre si mesmo, sem qualquer definição prévia do que significam esses rótulos. Não houve perguntas sobre economia política, papel do Estado, conflito capital versus trabalho ou mesmo sobre pautas identitárias específicas.

Além disso, a pesquisa incluiu uma pergunta complementar, em outra escala, medindo a identificação com os dois grandes polos personalizados da política recente: petismo e bolsonarismo. E aqui surge um dado frequentemente subexplorado na cobertura: há mais brasileiros que se dizem petistas do que bolsonaristas, mesmo num cenário em que mais pessoas se autodeclaram “de direita” do que “de esquerda”.

Esse simples cruzamento já deveria acender um alerta contra leituras apressadas.


Direita e esquerda: rótulos estáveis ou espelhos do momento?

Uma questão central — pouco discutida nas matérias jornalísticas — é: o que o brasileiro médio entende por direita e esquerda?

No Brasil, esses termos raramente correspondem às definições clássicas da teoria política. Para muitos entrevistados, “direita” pode significar:


  • valores religiosos ou morais conservadores;
  • rejeição ao chamado “progressismo cultural”;
  • antipetismo;
  • defesa genérica da ordem e da autoridade.


Da mesma forma, “esquerda” pode significar:


  • defesa da democracia;
  • políticas sociais;
  • rejeição ao autoritarismo;
  • oposição a figuras específicas, como Bolsonaro.


Nada disso, necessariamente, remete ao conflito capital versus trabalho, à crítica estrutural ao capitalismo ou à defesa de um Estado socialista, como na tradição marxista clássica. A pesquisa, portanto, mede climas simbólicos, não adesões programáticas.


Por que Lula vence eleições e a esquerda segue minoritária no Congresso?

A pesquisa ajuda — ainda que indiretamente — a iluminar uma das aparentes contradições da política brasileira: presidentes de centro-esquerda vencem eleições, mas o Congresso permanece majoritariamente conservador.

Isso ocorre porque o voto presidencial no Brasil é altamente personalizado e comparativo. Muitos eleitores não votam “na esquerda”, mas em Lula — por memória econômica, por carisma, por rejeição ao adversário ou por expectativa de proteção social.

Já o voto legislativo é outro fenômeno:


  • mais local,
  • mais fragmentado,
  • mais dependente de lideranças regionais,
  • frequentemente associado a pautas conservadoras nos costumes.


Assim, um mesmo eleitor pode votar em Lula para presidente e em um deputado conservador para a Câmara sem perceber contradição alguma. A pesquisa do Datafolha não explica tudo isso, mas é compatível com esse padrão histórico.


O efeito Bolsonaro: identificação ideológica por reação

Outro ponto essencial para entender os números atuais é olhar para trás. Durante o governo Bolsonaro, houve um fenômeno de identificação ideológica reativa. Para muitos brasileiros, especialmente nos centros urbanos, a associação da direita com autoritarismo, negacionismo e conflito institucional levou a uma reação do tipo:


Se isso é ser de direita, então eu sou de esquerda.


Isso ajuda a explicar por que, em pesquisas próximas a 2022, a autodeclaração à esquerda apareceu mais forte. Com Bolsonaro fora do Planalto, essa pressão simbólica diminui — e parte dessas identificações se dissolve, sem que isso signifique necessariamente uma guinada eleitoral à direita.


Um governo de esquerda em ambiente conservador: limites e frustrações

O atual governo Lula opera sob fortes restrições: um Congresso conservador, uma correlação de forças desfavorável e a necessidade permanente de conciliação. Isso estreita o leque de pautas possíveis e reduz o espaço para disputas simbólicas mais ousadas.

Para parte do eleitorado de esquerda, isso gera frustração. Para setores populares, pode gerar impaciência. Para eleitores que votaram em 2022 apenas para barrar o bolsonarismo, pode haver desmobilização.

Nada disso se traduz automaticamente em derrota eleitoral, mas ajuda a explicar por que a identificação ideológica pode oscilar mesmo sem grandes mudanças no quadro político imediato.


A cobertura da imprensa: o que ficou de fora?

Ao destacar apenas que “a direita é maior que a esquerda”, grande parte da imprensa:


  • ignorou o caráter subjetivo da pergunta;
  • não explorou a contradição entre autodeclaração ideológica e identificação com lideranças;
  • sugeriu, ainda que indiretamente, uma leitura eleitoral que a própria pesquisa não sustenta.


O resultado foi uma narrativa simplificada, que mais polariza do que esclarece.


Mais perguntas do que respostas — e isso é positivo

Lida com cuidado, a pesquisa do Datafolha não é um veredito, mas um convite ao debate. Ela levanta questões fundamentais:


  • O brasileiro se identifica mais por valores culturais do que por projetos econômicos?
  • A esquerda governa sem conseguir produzir identificação ideológica duradoura?
  • A direita cresce como identidade simbólica, mas não necessariamente como maioria eleitoral?
  • Estamos confundindo clima político com comportamento de voto?


Responder a essas perguntas exige mais do que manchetes. Exige reflexão, história e disposição para complexidade.

E talvez essa seja a principal lição: pesquisas não devem encerrar debates — devem iniciá-los.


📝NOTA METODOLÓGICA SOBRE A PESQUISA

Na análise desta pesquisa é importante destacar que o instituto Datafolha utilizou uma escala de autodeclaração ideológica, na qual os entrevistados se posicionaram de 1 a 7, sendo 1 mais à esquerda e 7 mais à direita. Essa pergunta capta como cada pessoa percebe seu próprio posicionamento político, e não uma intenção de voto nem um indicador objetivo do comportamento eleitoral. Ou seja, diferentes entrevistados podem interpretar esses rótulos (como “direita” ou “esquerda”) de maneiras distintas, dependendo de suas experiências, valores culturais e contexto social. A pesquisa ouviu 2.002 pessoas com 16 anos ou mais em 113 municípios brasileiros entre 2 e 4 de dezembro de 2025, com margem de erro de cerca de ±2 pontos percentuais.

🔗 Link de acesso à pesquisa (folha de resultados no portal da Folha de S.Paulo / Datafolha):
👉 https://www1.folha.uol.com.br/folha-topicos/datafolha/Nessa seção estão os levantamentos do Datafolha, incluindo o de dezembro de 2025 com os dados de identificação ideológica.


OBS: O texto foi escrito mais para provocar reflexão do que para fechar conclusões com foco em: esclarecer o que a pesquisa do Datafolha mede e o que ela não mede; contextualizar a identificação direita–esquerda ao longo das décadas; discutir a ambiguidade do conceito de “direita” e “esquerda” para o entrevistado; problematizar a relação entre vitórias presidenciais de Lula e a minoria da esquerda no Congresso; levantar hipóteses sobre ambiente político, conservadorismo social, bolsonarismo, frustração eleitoral e limites da esquerda governista; apontar fragilidades da cobertura da grande imprensa e como ela pode induzir leituras apressadas. Na opinião deste blogueiro, muitos brasileiros, de um modo geral, não têm uma definição consistente sobre o que significa ser politicamente se direita ou de esquerda. O assunto não pára por aqui.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

O Natal que aprendemos a sentir


Charles Dickens

(Dickens, Andersen, o Brasil imperial e os sentidos do Natal ontem e hoje)


Quando pensamos no Natal como tempo de empatia, cuidado com os pobres, valorização da infância e reunião familiar, tendemos a imaginar que esses significados sempre existiram. Mas não: o Natal que hoje reconhecemos é, em grande parte, uma construção cultural do século XIX, moldada pela literatura, pelas transformações sociais da Europa industrial e, mais tarde, reinterpretada em países como o Brasil.

Dois contos, escritos em um intervalo de apenas dois anos — Um Conto de Natal (1843), de Charles Dickens, e A Pequena Vendedora de Fósforos (1845), de Hans Christian Andersen — ajudam a compreender essa virada histórica. Ambos nascem da mesma época, denunciam o mesmo mundo desigual, mas oferecem respostas morais muito diferentes. Para entender seu impacto, é preciso olhar primeiro para o contexto em que surgiram.


A Inglaterra dos anos 1840: progresso e miséria

A Inglaterra da década de 1840 era o coração da Revolução Industrial. As cidades cresciam rapidamente, fábricas funcionavam por longas jornadas, e o trabalho infantil era comum. A riqueza aumentava, mas se concentrava. A pobreza urbana tornava-se visível, incômoda, impossível de ignorar.

O Natal, até então, não ocupava o lugar afetivo central que hoje possui. Em muitos ambientes, era apenas uma data religiosa ou um feriado irregular. Foi nesse cenário que a literatura passou a atuar como consciência moral da sociedade, questionando o custo humano do progresso.


Charles Dickens e o Natal da redenção (1843)

Charles Dickens conhecia a pobreza não por observação distante, mas por experiência pessoal. Na infância, trabalhou em uma fábrica após o pai ser preso por dívidas. Essa vivência marcou toda a sua obra.

Em Um Conto de Natal, Dickens apresenta Ebenezer Scrooge, um homem avarento que despreza o Natal e ignora a miséria ao seu redor. Visitado por fantasmas do passado, do presente e do futuro, Scrooge não é punido: é confrontado emocionalmente. O medo que sente não é da morte, mas de uma vida sem vínculos, sem afeto, sem legado.

O conto propõe algo revolucionário para a época:
o Natal não como luxo ou ostentação, mas como responsabilidade social.
A mensagem é clara: a sociedade pode mudar se os indivíduos mudarem.

O impacto foi imediato. Leitores relataram doações, mudanças de comportamento, maior atenção aos pobres. Dickens ajudou a fixar o Natal como tempo de empatia ativa — um marco cultural que atravessaria gerações.


Hans Christian Andersen e o Natal da omissão (1845)


"A Pequena Vendedora de Fósforos"

Dois anos depois, na Dinamarca, Hans Christian Andersen publica A Pequena Vendedora de Fósforos. O cenário é semelhante: inverno rigoroso, cidade iluminada, desigualdade gritante. Mas a resposta moral é oposta.

A menina que vende fósforos não encontra redenção no mundo. Cada fósforo aceso revela uma ilusão de calor, alimento e cuidado — tudo aquilo que a sociedade lhe nega. O Natal, aqui, não salva; expõe. A cidade celebra, mas não vê.

Se Dickens pergunta “e se mudarmos?”, Andersen responde “e se não mudarmos?”.
Verifica-se que o conto não oferece conforto, mas denúncia. É um retrato do fracasso coletivo diante da infância abandonada.


Dois contos, uma mesma ferida

Dickens e Andersen escrevem sobre o mesmo século, a mesma urbanização desigual, a mesma indiferença social. Um escolhe a esperança transformadora; o outro, a acusação silenciosa. Ambos, porém, colocam o Natal como espelho moral da sociedade.

Essas obras ajudaram a consolidar a ideia de que o Natal diz menos sobre religião formal e mais sobre como tratamos os mais vulneráveis.


E o Brasil da década de 1840?

Enquanto esses debates atravessavam a Europa, o Brasil vivia sob o Império de Dom Pedro II, em uma sociedade agrária, escravocrata e profundamente hierarquizada.

O Natal brasileiro dos anos 1840 era:


  • essencialmente religioso, centrado em missas e presépios;
  • pouco voltado à infância ou à vida familiar;
  • marcado por profundas desigualdades normalizadas pela escravidão.


Para a elite, havia ceias e rituais domésticos. Para os pobres e escravizados, o Natal raramente significava descanso, muito menos solidariedade. A empatia social que Dickens defendia ainda não fazia parte do imaginário nacional.


Quando o Natal começa a mudar no Brasil

As transformações vieram lentamente, entre o final do século XIX e o início do XX, impulsionadas por:


  • urbanização;
  • imigração europeia;
  • expansão da imprensa;
  • circulação de obras literárias e valores culturais estrangeiros.


Abolição da escravidão (1888), República (1889) e crescimento das cidades alteraram o modo de celebrar. O Natal passou a incorporar:


  • a centralidade da família;
  • a valorização da infância;
  • ações de caridade;
  • símbolos modernos, como a árvore e a troca de presentes.


Sem que muitos percebessem, o Brasil também passou a celebrar um Natal filho de Dickens, ainda que adaptado à sua própria realidade.


1843, 1845 e o presente

Hoje, convivemos com os dois Natais:


  • o de Dickens, que acredita na transformação;
  • o de Andersen, que denuncia a indiferença.


Em um país ainda marcado por desigualdades, os dois contos continuam atuais. Eles nos lembram que o Natal não é apenas uma data, mas uma pergunta ética que se repete todos os anos:


vamos mudar — ou apenas acender fósforos enquanto passamos adiante?


Conclusão

Os Natais de 1843 e 1845 não pertencem apenas ao passado europeu. Eles ajudaram a moldar o modo como o mundo — e o Brasil — aprendeu a sentir o Natal. Entre redenção e denúncia, esperança e omissão, a literatura nos ensinou que celebrar o nascimento é também escolher que tipo de sociedade queremos sustentar.

Entre a trégua e a tragédia: Gaza, Belém e o imperativo da paz


Manjedoura da Igreja Luterana da Natividade


Duas matérias publicadas recentemente no jornal O GLOBO — uma revelando, por meio de imagens de satélite, a continuidade de demolições em Gaza apesar do cessar-fogo, e outra mostrando Belém retomando as celebrações de Natal em um dia descrito como “repleto de alegria” — expõem, juntas, a profunda contradição que marca o atual momento do conflito israelense-palestino. Elas não se anulam; dialogam. E, justamente por isso, exigem uma leitura crítica, humana e responsável.

Enquanto em Belém, cidade símbolo do nascimento de Jesus, sinos voltam a tocar e famílias se reúnem para celebrar a esperança, Gaza permanece mergulhada em ruínas, luto e desamparo. A trégua, embora necessária e bem-vinda, não foi suficiente para estancar o sofrimento de uma população submetida a bombardeios, deslocamentos forçados, fome, colapso sanitário e trauma psicológico coletivo. A alegria possível em Belém contrasta com a dor persistente em Gaza — e essa assimetria não pode ser ignorada ou romantizada.

A guerra, quando prolongada e assimétrica, deixa de ser apenas confronto militar e passa a ser uma experiência cotidiana de perda. Crianças órfãs, famílias inteiras apagadas, bairros inteiros reduzidos a escombros. Não se trata apenas de estatísticas, mas de vidas interrompidas e futuros roubados. O sofrimento palestino, em especial em Gaza, já ultrapassou o limite do aceitável sob qualquer prisma humanitário ou jurídico.

Nesse contexto, ganham relevância as ações de ativistas e da sociedade civil internacional, como as promovidas pela Flotilha da Liberdade. Ainda que essas iniciativas não tenham poder militar nem consigam romper, de forma concreta, o bloqueio imposto a Gaza, elas cumprem um papel essencial: manter o mundo olhando, incomodar consciências, expor contradições e elevar o custo moral e político da indiferença. A história recente mostra que, muitas vezes, mudanças estruturais começam com gestos simbólicos que desafiam o silêncio e a normalização da injustiça.

No plano estatal, o papel do Sul Global merece destaque. O Brasil, sob a liderança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tem assumido uma posição firme e vocal em defesa do direito internacional humanitário, denunciando o massacre de civis, o uso da fome como arma de guerra e a necessidade de responsabilização. Embora não disponha de poder militar ou coercitivo, o Brasil atua como voz moral relevante nos fóruns multilaterais, ajudando a sustentar a legitimidade jurídica das denúncias e a impedir que a tragédia palestina caia no esquecimento.

A África do Sul foi além do discurso e transformou indignação em ação concreta ao levar Israel à Corte Internacional de Justiça, acusando-o de violar a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Ao fazê-lo, resgatou sua própria memória histórica de luta contra o apartheid e reafirmou que o direito internacional não deve ser seletivo. A Turquia, por sua vez, ocupa uma posição ambígua: combina retórica dura em defesa dos palestinos com a manutenção de relações econômicas e estratégicas com Israel, revelando os limites entre discurso político e ação efetiva.

Nesse cenário, surge inevitavelmente a questão da responsabilização. A possibilidade de que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu venha a responder por crimes de guerra e crimes contra a humanidade em instâncias internacionais, como o Tribunal Penal Internacional, deixou de ser mera especulação acadêmica e passou a integrar o debate público global. Ainda que a aplicação da justiça internacional seja lenta e sujeita a pressões políticas, o simples fato de tais acusações ganharem corpo já representa uma ruptura com décadas de impunidade percebida.

Mas nenhuma responsabilização, por si só, será suficiente se não houver um horizonte político capaz de oferecer dignidade, segurança e futuro a ambos os povos. A solução de dois Estados — Israel e Palestina vivendo lado a lado, em paz e com reconhecimento mútuo — continua sendo, apesar de todos os obstáculos, o ideal mais justo e equilibrado. Hoje, é verdade, esse projeto parece distante: a expansão de assentamentos na Cisjordânia, a fragmentação territorial palestina, a fragilidade das lideranças e a radicalização política corroem sua viabilidade imediata. Ainda assim, abandoná-lo significaria aceitar como normal um regime permanente de desigualdade, violência e exceção.

As matérias que inspiram esta reflexão, quando lidas em conjunto, nos lembram de algo essencial: a paz não é apenas a ausência momentânea de tiros, mas a presença de justiça, de direitos e de reconhecimento da humanidade do outro. Celebrar o Natal em Belém é legítimo e necessário; denunciar a tragédia contínua em Gaza é igualmente urgente. Uma coisa não exclui a outra — ao contrário, se completam.

Num mundo cada vez mais polarizado, insistir na coexistência pacífica, na tolerância e no diálogo pode parecer ingênuo. Mas é justamente essa insistência que separa a civilização da barbárie. A paz não nasce da força bruta nem do silêncio cúmplice, mas da coragem de reconhecer dores, responsabilidades e limites. Israelenses e palestinos têm direito à segurança, à vida e à dignidade. Enquanto isso não for garantido para ambos, nenhuma trégua será suficiente — e nenhuma celebração estará completa.

Quando o Natal tinha dia, lugar e um Papai Noel de verdade



Houve um tempo em que o Natal no Rio de Janeiro não chegava em notificações de celular, nem se resumia a vitrines apressadas. Ele tinha data marcada, expectativa acumulada por semanas e um ponto de encontro quase sagrado: o velho Maracanã.

Para milhares de crianças — e também para adultos que se permitiam sonhar — o Natal ganhava forma quando José Antônio Rodrigues (1918–1990) aparecia. Ele não era apenas alguém vestido de vermelho. Era o Papai Noel. Aquele que parecia existir desde sempre e que, por alguns instantes, tornava o mundo mais simples e mais justo.

As famílias saíam cedo de casa. Ônibus cheios, mãos dadas, sanduíches embrulhados em papel-alumínio. O estádio ia sendo tomado por vozes infantis, risadas, balões, músicas natalinas ecoando nos alto-falantes. Havia calor, havia multidão — mas havia, sobretudo, uma sensação rara: a de pertencimento.

E então vinha o momento esperado. O olhar se voltava para o céu ou para o túnel do gramado. Quando José Antônio surgia — muitas vezes descendo de helicóptero — o Maracanã parecia suspender o tempo. O aplauso era espontâneo, quase infantil também. Não importava a idade: todos aplaudiam como se aquele gesto confirmasse algo essencial — o Natal chegou.

Com sua barba branca, a voz serena e os gestos amplos, ele falava às crianças, desejava paz, felicidade, um ano melhor. Palavras simples, ditas sem pressa. E talvez por isso mesmo tão poderosas. Não havia ironia, não havia desconfiança. Havia escuta.

José Antônio Rodrigues foi reconhecido oficialmente como Papai Noel do Brasil, mas o título mais importante veio do povo. Ele se tornou parte da memória emocional de uma cidade e de um país. Em um Brasil sem neve, mostrou que o Natal não precisava de frio europeu para existir — bastava encontro, imaginação e afeto coletivo.

Hoje, quando essas histórias são contadas, elas vêm acompanhadas de fotos um pouco desbotadas, de lembranças fragmentadas, de frases como “lembra disso?”. Mas também vêm com algo raro: um brilho nos olhos. Porque, por alguns anos, acreditamos juntos. E isso deixa marcas boas.

Talvez o mundo tenha ficado mais rápido. Talvez o Natal tenha mudado de forma. Mas para quem esteve ali, sentado nas arquibancadas do Maracanã, esperando o Papai Noel aparecer, fica a certeza de que a infância foi real, foi compartilhada — e foi feliz.

E enquanto essas lembranças forem contadas, José Antônio Rodrigues continuará chegando. Não mais de helicóptero, mas pela memória — onde o Natal ainda é possível. 🎄✨


📷: José Antônio Rodrigues em sua última aparição como Papai Noel, ao microfone, no Maracanã, em 1989 | Cesar Guimarães/Agência O Globo

Natal de Esperança – Rio de Janeiro, 1985



O calor de dezembro envolvia o bairro de Copacabana. A janela da sala estava aberta, e o vento carregava os sons do trânsito, das buzinas e das vozes da rua. A pequena sala, decorada com uma árvore improvisada feita de galhos de pinheiro do Mercado de São Cristóvão, cheirava a rabanada e café recém-passado.

Sentados ao redor da mesa, estavam Dona Helena, matriarca de sessenta anos, vestida com uma blusa de tricô verde, Paulo, seu filho de vinte e dois, estudante de jornalismo, e Cláudia, a filha de dezoito, que estudava no Colégio Pedro II e adorava música internacional.

— Olha essa rabanada, mãe — disse Cláudia, colocando uma fatia no prato. — Tá perfeita. Esse Natal parece mais… leve, sabe? Depois de tudo que passou este ano.

Dona Helena sorriu, mexendo o café.

— Leve? Eu diria que é um alívio, minha filha. Finalmente, não tem mais aqueles generais olhando cada palavra que a gente fala. Mas ainda é cedo para dizer que tudo mudou.

Paulo interrompeu, segurando o jornal O Globo:

— Vocês viram essa coluna sobre a inflação? Diz que a alta de preços só vai piorar até o próximo governo ajustar as contas. Esse Sarney vai ter muito trabalho.

— E o Tancredo… — disse Cláudia, sentando-se ao lado do irmão — Sempre que penso nele, sinto esperança. Mas você viu que ele nem chegou a assumir o cargo? É estranho comemorar a democracia assim, com tanta coisa ainda no ar.

— Democracia é isso mesmo — respondeu Dona Helena, pousando a colher. — A gente comemora cada vitória, mesmo que incompleta. E esse Natal, para mim, é isso: esperança.

Paulo riu, lembrando-se de algo que tinha ouvido no rádio.

— Alguém aí assistiu ao Cassino do Chacrinha ontem? O Chacrinha está mais engraçado do que nunca. E parece que a Cláudia anda ouvindo só Madonna e Eurythmics… — ele brincou, piscando para a irmã.

Cláudia fez cara de indignada.

— É música do mundo, Paulo! Mas você pode ouvir o Raul Seixas ou o Legião Urbana, se quiser. Aliás, vocês ouviram que o novo disco do Barão Vermelho vai lançar em janeiro?

Dona Helena balançou a cabeça, rindo.

— Ah, esses jovens… Mas mudando de assunto, vocês viram que o Flamengo ganhou de novo? Parece que 1985 foi o ano deles. Imaginem só, um Natal com todo mundo falando de futebol e ainda sonhando com estabilidade.

Paulo folheou o jornal novamente e comentou:

— É, futebol e música salvam o espírito, mas nas ruas do Rio, ainda tem tensão política. Vi uma discussão no bar de Ipanema: um grupo apoiava Sarney, outro falava mal do governo e lembrava do período militar. Parece que a cidade está dividida.

Cláudia franzia a testa:

— Eu sei… No colégio, tem gente que acha que tudo vai melhorar rápido, e outros que acham que nada vai mudar. Eu fico com um meio-termo: a gente tem liberdade agora, e isso já é enorme.

Dona Helena suspirou, olhando pela janela para os prédios iluminados.

— Lembram de 64? Quem diria que chegaríamos a este Natal… sem medo de falar o que pensamos, mesmo que às vezes a gente discorde uns dos outros. Isso é liberdade. E é por isso que cada abraço, cada mesa cheia, tem valor.

Paulo ergueu o copo de suco de laranja.

— Um brinde, então. Aos novos tempos, às nossas discussões, às músicas, novelas e notícias que vão nos acompanhar. E que o ano que vem traga mais democracia, mais justiça e menos inflação!

— Amém — disse Cláudia, sorrindo. — E que o Brasil aprenda a lidar com tanta liberdade de uma vez por todas.

O sino do vizinho soou ao longe. O Rio parecia pulsar com uma mistura de alegria e cautela. Nas ruas, alguns carros buzinavam, crianças corriam com sacolas de presentes, e a cidade se preparava para a noite.

Dona Helena olhou para os filhos, sentindo que aquele Natal tinha algo de especial. Era mais que rabanadas e presentes; era um Natal de esperança, o primeiro de uma nova era, e cada família, cada conversa, cada divergência política fazia parte daquele tempo histórico.

O rádio tocava “We Are the World”, e a voz de Michael Jackson parecia conversar com a própria cidade: cheia de esperança, cheia de desafios, cheia de futuros possíveis.

E assim, naquele 25 de dezembro de 1985, uma família no Rio de Janeiro celebrava o Natal com amor, discussão e a liberdade recém-conquistada, sabendo que o país começava a escrever uma nova história.


📷 Dan Lindbergh / Flickr, conforme extraído de https://www.flickr.com/photos/9508280@N07/17103928971

Mangaratiba precisa iniciar o Orçamento Participativo de forma ampla e democrática em 2026



Mangaratiba tem uma história rica e diversificada: seis distritos, bairros, vilas, ilhas e comunidades tradicionais que merecem voz ativa nas decisões sobre os investimentos públicos. É hora de transformar essa diversidade em participação real, com o Orçamento Participativo (OP).


O que é o Orçamento Participativo?

OP é um instrumento de democracia direta que permite à população decidir sobre prioridades de investimentos públicos. Surgiu no Brasil no final dos anos 1980, com Porto Alegre sendo pioneira em 1989, e hoje é referência mundial.

Benefícios do OP:


  • Fortalece a democracia local;
  • Amplia a inclusão social;
  • Torna o uso do dinheiro público mais eficiente e transparente;
  • Reduz desigualdades urbanas e prioriza serviços essenciais;
  • Cria um diálogo contínuo entre população e governo.


Cidades do Espírito Santo, São Paulo e Santa Catarina também relatam melhorias significativas na distribuição de recursos e planejamento urbano participativo.


O respaldo legal e constitucional

O OP encontra base nos princípios da participação popular e eficiência administrativa:


  • Constituição Federal de 1988: garante participação e controle social;
  • Lei Orgânica do Município: reforça transparência e inclusão de todos os cidadãos;
  • Responsabilidade Fiscal e LGPD: asseguram gestão responsável e proteção de dados.


O legado do PLO 55/2016 em Mangaratiba

Em 2016, foi apresentado o Projeto de Lei Ordinária nº 55/2016, propondo a criação do OP em toda a cidade. Embora não tenha sido aprovado, ele:


  • Previa assembleias em bairros, vilas, distritos e ilhas;
  • Criava delegados e conselheiros para representar a população;
  • Integrava o processo ao PPA, LDO e LOA, garantindo participação direta nas decisões orçamentárias.


O projeto continua sendo uma referência fundamental para implementar o OP, mas precisa de algumas atualizações para 2026:


  • Ferramentas digitais e consultas remotas;
  • Inclusão de comunidades tradicionais;
  • Atualização do mapa territorial e regras de participação;
  • Alinhamento com legislação atual e transparência plena.


Por que 2026 é o momento ideal?

O ano de 2026 oferece a chance de:


  • Iniciar o OP gradual, estruturado e acessível;
  • Criar assembleias locais e digitais;
  • Garantir que todas as regiões tenham representatividade;
  • Integrar o processo ao planejamento da LOA 2027;
  • Transformar o OP em uma prática permanente de gestão participativa.


Mangaratiba pode se tornar referência na Costa Verde, fortalecendo a democracia e garantindo que todas as vozes do município sejam ouvidas e respeitadas.


Nota 1: Projeto de Lei Atualizado (baseado no PL 55/2016)

Projeto de Lei nº XX/2026
Ementa: Dispõe sobre a participação da população na elaboração, definição e acompanhamento do Plano Plurianual, das Diretrizes Orçamentárias e do Orçamento Anual do Município de Mangaratiba.

Art. 1º Institui a participação da população, em processo de democracia direta, voluntária, universal e acessível, nos bairros, vilas, ilhas e distritos, nas etapas de elaboração, definição e acompanhamento do PPA, LDO e LOA.

§ 1º A participação será de caráter consultivo, ocorrendo em assembleias públicas nos bairros, vilas, ilhas e distritos, discutindo e priorizando programas, obras e serviços.

§ 2º A população elegerá delegados proporcionais ao número de participantes, que representarão sua localidade nas plenárias distritais, onde serão eleitos os conselheiros do OP.

§ 3º Conselheiros e delegados poderão sugerir e acompanhar a execução do plano de investimentos e da proposta orçamentária, integrando mecanismos digitais e presenciais.

§ 4º O Executivo garantirá transparência total, prestando contas à população em assembleias e plataformas digitais.

Art. 2º O processo será auto-regulamentado pelo Conselho do OP, podendo ser revisado anualmente.

Parágrafo único. O regulamento definirá:

  • Metodologia participativa;
  • Proporcionalidade de delegados e conselheiros;
  • Regimento interno;
  • Critérios de distribuição de recursos entre distritos;
  • Integração de ferramentas digitais;
  • Respeito a comunidades tradicionais e áreas de difícil acesso.

Art. 3º Autoriza dotação orçamentária para despesas do OP.
Art. 4º A lei entra em vigor na data da publicação, revogando disposições contrárias.


Nota 2: Passo a passo e calendário de implantação do OP em 2026

MêsEtapaAções principais
Jan – MarPlanejamentoRevisão do PLO 55/2016, mapeamento territorial e comunidades, definição da equipe e canais de comunicação.
Mar – JunRegulamentaçãoCriação de regulamento provisório; regras para assembleias, delegados e integração digital; alinhamento legal; envio à Câmara, se aplicável.
Jul – AgoMobilizaçãoDivulgação ampla em rádios, redes sociais, escolas e associações; materiais educativos; orientação de delegados e conselheiros.
Set – OutAssembleias locaisAssembleias em distritos, bairros, vilas e ilhas; consultas digitais; eleição de delegados.
Out – NovPlenárias distritaisDelegados participam das plenárias distritais; eleição do Conselho do OP; consolidação das prioridades.
Nov – DezConsolidação para LOA 2027Produção de relatório consolidado; integração das prioridades à LOA 2027; envio à Prefeitura e Câmara.
Dez em dianteTransparênciaDivulgação de resultados; acompanhamento de investimentos; planejamento para 2027.

Observações:

  • Assembleias descentralizadas são essenciais para inclusão de todas as regiões.
  • Ferramentas digitais ampliam alcance e participação.
  • Comunidades tradicionais devem ter mecanismos adaptados à realidade cultural e logística.
  • O OP pode começar mesmo sem lei aprovada, funcionando como subsídio técnico para a LOA 2027.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

🎄Natal Mangaratiba 2025 Costa Verde

 


Em Mangaratiba,

o Natal não chega apenas pelo calendário.

Ele nasce devagar,

entre a serra e o mar,

no verde que insiste em viver,

na água que corre,

na gente que permanece.


Aqui, o nome já diz tudo:

terra de abundância,

lugar onde a vida encontra solo

e decide ficar.


O presépio se espalha

pela Mata Atlântica que resiste,

pela restinga que protege,

pelas praias onde o azul aprende a ser esperança.

Entre trilhas, cachoeiras e ilhas,

a criação inteira parece sussurrar

que Deus gosta de nascer onde há cuidado.


Mas Mangaratiba não é só paisagem.

É história viva.

É memória indígena,

é caminho antigo de tropeiros,

é porto, roça, fé e travessia.


É também território de resistência.

Nas comunidades quilombolas,

na Ilha da Marambaia e além,

o Natal se reconhece

na ancestralidade que ensina a esperar,

na partilha,

na luta silenciosa por dignidade.

Ali, o nascimento é coletivo,

e a esperança tem raiz profunda.


Talvez por isso a cidade inspire canções.

Porque cada planta precisa do seu habitat,

cada gente do seu chão.

E Mangaratiba é esse lugar

onde a vida encontra abrigo

para crescer do seu jeito,

com identidade,

com memória,

com afeto.


O Natal também mora

na Igreja de Nossa Senhora da Guia,

erguida com fé antiga;

no pescador que conhece o tempo do mar;

na mesa simples que reúne;

no gesto anônimo que cuida

sem esperar aplauso.


Aqui, famosos passam,

mas o que fica

é o essencial:

o povo,

a cultura,

a história compartilhada.


Que neste Natal

a estrela não nos aponte para longe,

mas para dentro:

para nossa responsabilidade com a terra,

com a memória,

com quem caminha ao nosso lado.


Que Mangaratiba continue sendo

habitat natural da vida,

da esperança

e do amor que insiste.


Feliz Natal.

Que o Menino nasça,

mais uma vez,

entre nós.


📝 Nota: Mangaratiba integra a Costa Verde fluminense e abriga áreas preservadas de Mata Atlântica, o Parque Estadual do Cunhambebe e a APA Marinha do Boto-Cinza. O município reúne comunidades tradicionais — incluindo os quilombolas da Marambaia e de Santa Izabel/Santa Justina — e um patrimônio histórico que remonta ao período colonial, com destaque para a bicentenária Igreja de Nossa Senhora da Guia.