No dia 7 de dezembro de 1940, sob o governo do Getúlio Vargas, foi promulgado o Decreto‑Lei 2.848, inaugurando o atual Código Penal. A lei entrou em vigor em 1º de janeiro de 1942 e desde então — por mais de oito décadas — moldou os contornos da justiça criminal no Brasil.
Mas que tipo de país ajudou a construir? E que limites, contradições e cicatrizes essa longa vigência revelou? Ao comemorarmos seus 85 anos, é hora de revisitar esse legado com olhar crítico — ponderando acertos, fracassos e o apelo urgente por uma reforma profunda.
📜 Contexto histórico e herança autoritária
O Código de 1940 foi gestado e nascido num contexto político autoritário — o Estado Novo. Sua criação correspondeu a uma lógica de “ordem e controle” típica da época, com forte viés repressivo.
Embora tenha sido, em sua origem, elogiado como “avanço técnico-jurídico” — fruto da comissão capitaneada por penalistas da época — ele também carregava a mentalidade da “defesa social” típica de regimes que viam no Direito Penal instrumento de controle estatal mais do que de proteção de direitos individuais.
Esse pano de fundo autoritário implica que o Código não nasceu de um pacto democrático e plural — e parte dessa herança permanece em suas estruturas, conceito de pena e lógica repressiva. Por isso, manter esse mesmo arcabouço por 85 anos significa sustentar, por décadas, valores que muitas vezes contrariam os ideais de dignidade da pessoa humana, pluralidade e direitos fundamentais consagrados pela Constituição Federal de 1988.
✅ Acertos e contribuições — o que funcionou
Apesar de seu contexto problemático, o Código Penal cumpriu papéis importantes:
- Ele consolidou bases jurídicas fundamentais: tipicidade, legalidade, culpabilidade, proporcionalidade — criando um mínimo de ordem, estabilidade e previsibilidade para o sistema penal.
- Ofereceu estrutura formal para que o Estado definisse com clareza o que é crime, quais penas aplicar, regras de processo penal e garantias gerais — o que foi essencial para a institucionalização do Estado de Direito no Brasil ao longo dos anos.
- Ao longo do tempo, o Código foi objeto de reformas pontuais: a Parte Geral foi alterada em 1984 (via Lei nº 7.209/1984), numa tentativa de adaptar conceitos penais à evolução da sociedade.
- Além disso, o sistema penal se expandiu por leis complementares e penais especiais — o que permitiu que novas condutas (crimes sexuais, feminicídio, tráfico de pessoas etc.) pudessem ser tipificadas conforme as transformações sociais demandavam.
Ou seja: o Código e seus desdobramentos ajudaram a dar uma base normativa e institucional para a repressão ao crime, à definição de responsabilidades e à suposta segurança jurídica — algo essencial num país marcado por desigualdades e violência estrutural.
⚠️ Limitações profundas: defasagem, “colcha de retalhos”, punitivismo e a falência do cárcere
Contudo, os quase 85 anos de vigência também escancararam falhas graves — muitas delas estruturais:
- O Código nasceu num tempo em que o Brasil (e o mundo) eram muito diferentes: não havia globalização, crimes cibernéticos, nem a complexidade social, econômica, racial e urbana que hoje enfrentamos. Isso tornou parte de seu arcabouço obsoleto diante da modernidade.
- A expansão normativa (leis especiais, leis avulsas, modificações pontuais) transformou o sistema penal num mosaico fragmentado — uma verdadeira “colcha de retalhos” — dificultando a coerência interna, gerando sobreposições, lacunas, insegurança jurídica e desigualdade de aplicação.
- O modelo permanece essencialmente punitivista. A pena e o cárcere continuam como respostas privilegiadas aos problemas sociais — mas o sistema prisional brasileiro, como denunciado por organismos internacionais de direitos humanos, está em colapso: superlotação, violações de direitos, negligência, tortura, condições desumanas.
- Por fim — e talvez o mais grave — a lei, por si só, pouco tem a oferecer quando o problema é estrutural: desigualdades sociais, pobreza, exclusão, racismo, falta de políticas públicas de prevenção, reinserção social e justiça restaurativa. O simples endurecimento penal não corrige essas mazelas — ao contrário: frequentemente as agrava. O sistema penal, longe de ser instrumento de justiça social, muitas vezes se torna uma “máquina de moer gente”.
Em resumo: o Código Penal de 1940, nestes 85 anos, teve papel central — e às vezes essencial — na estruturação do Direito Penal no Estado brasileiro. Mas também provou-se insuficiente, muitas vezes injusto, inadequado e incapaz de responder às transformações sociais e às demandas de direitos humanos do Brasil contemporâneo.
O PLS 236/2012 — proposta de um novo Código: o que trouxe, o que perdeu e a morosidade que persiste
Diante desse legado problemático, em 2012 foi apresentado ao Senado o PLS 236/2012 — um projeto ambicioso de um novo Código Penal para o Brasil.
📌 Principais pontos e intenções do projeto
- O PLS busca recodificar de forma completa o direito penal: reescrever tanto a parte geral quanto a especial, para modernizar conceitos, condutas e penas.
- Entre suas propostas constavam a atualização diante das transformações sociais e tecnológicas: crimes cibernéticos, crimes ambientais, organização criminosa, criminalidade transnacional, normas mais condizentes com os direitos fundamentais e o contexto contemporâneo.
- Pretendia também unificar e ordenar a legislação penal dispersa — reduzindo a dependência de dezenas, talvez centenas, de leis penais especiais, leis avulsas e normas suplementares, restaurando coerência e clareza normativa.
Em suma: era — e continua sendo — uma tentativa de dar ao Brasil um Código Penal do século XXI, compatível com a Constituição de 1988, com direitos humanos, com a complexidade social e com a modernidade.
🔄 As emendas, críticas e o enfraquecimento da proposta original
Ao longo da tramitação, o PLS sofreu forte pressão e muitas modificações: o texto original teve dispositivos sensíveis questionados ou retirados — por exemplo, propostas de descriminalização ou flexibilização de drogas, alterações em matéria de aborto, expansão de responsabilidade penal de pessoas jurídicas, institutos de barganha entre acusação e defesa etc. Muitas dessas inovações foram deixadas de lado.
Entre críticos acadêmicos há questionamentos sérios: não apenas sobre quais mudanças permaneceriam, mas sobre se a versão remanescente do PLS seria mais justa — ou apenas uma versão modernizada da velha lógica punitivista. Há quem argumente que a “reescrita” proposta, em alguns de seus pontos centrais, falha em corrigir a cultura penalista dominante.
🐢 A morosidade do Parlamento e o vazio legislativo persistente
Desde 2012 se passaram muitos anos — mais de uma legislatura — e o novo Código ainda não foi aprovado. Isso revela não apenas a dificuldade de consenso, mas a lentidão estrutural e, de certo modo, a falha institucional do Parlamento para dar resposta a uma demanda que, para muitos, é urgente e necessária.
A demora prolongada impede que o Brasil deixe de depender de um código de 1940, incompleto e fragmentado, convivendo com normas ineficazes, redundantes ou antiquadas. Isso mantém viva a contradição: leis de época autoritária sendo aplicadas num Estado democrático, marcado por profundas desigualdades.
🔮 Para onde vamos: por que 2027 (e a próxima legislatura) precisam priorizar o novo Código — com mudança de lei e de paradigma
A definição de um novo Código Penal será um dos grandes desafios da próxima legislatura. E esse debate merece espaço na pauta desde cedo — idealmente logo no início de 2027. A sociedade brasileira clama por segurança pública, mas também por justiça social, direitos humanos, dignidade, coerência e efetividade.
No entanto, é preciso deixar claro: mudar a lei não basta. A aprovação de um novo Código, por si só, não garante que o sistema penal será mais justo, eficaz ou humano. É necessário repensar mais amplamente: políticas de prevenção, reinserção social, educação, redução de desigualdades, condições dignas nas prisões, garantia de direitos básicos, justiça restaurativa, estrutura de defensorias e acesso à justiça, entre outros elementos.
Se a reforma for feita apenas em termos de texto — sem mudança de paradigma — corre-se o risco de perpetuar o que há de pior no sistema penal. Punição, encarceramento e repressão constantes, num ciclo que não soluciona a criminalidade, mas alimenta exclusão, violência e injustiça.
Por isso, a tarefa que se avizinha não é apenas legislativa — é civilizatória. Exige maturidade, sensibilidade social, coragem política, participação da sociedade civil e compromisso com os direitos fundamentais.
Somente assim será possível fazer justiça à memória desses 85 anos — não celebrando, mas aprendendo com os erros — e construir um sistema penal compatível com os valores democráticos, com a Constituição de 1988 e com a dignidade de todos.