Na Bíblia, assim como em outras tradições culturais-religiosas, os homens sempre compartilham suas experiências metafísicas ou espirituais baseadas em comparativos com elementos terrenos. No Apocalipse, João faça sobre um "novo céu" e uma "nova terra" na qual haverá uma santa cidade, a "nova Jerusalém" onde os homens (salvos) habitarão com Deus eternamente.
"Um dos sete anjos que tinham as sete taças cheias das últimas sete pragas aproximou-se e me disse: "Venha, eu lhe mostrarei a noiva, a esposa do Cordeiro". Ele me levou no Espírito a um grande e alto monte e mostrou-me a Cidade Santa, Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus. Ela resplandecia com a glória de Deus, e o seu brilho era como o de uma jóia muito preciosa, como jaspe, clara como cristal. Tinha uma grande e alta muralha com doze portas e doze anjos junto às portas. Nas portas estavam escritos os nomes das doze tribos de Israel. Havia três portas ao oriente, três ao norte, três ao sul e três ao ocidente. A muralha da cidade tinha doze fundamentos, e neles estavam os nomes dos doze apóstolos do Cordeiro. O anjo que falava comigo tinha como medida uma vara feita de ouro, para medir a cidade, suas portas e seus muros. A cidade era quadrangular, de comprimento e largura iguais. Ele mediu a cidade com a vara; tinha dois mil e duzentos quilômetros de comprimento; a largura e a altura eram iguais ao comprimento. Ele mediu a muralha, e deu sessenta e cinco metros de espessura, segundo a medida humana que o anjo estava usando. A muralha era feita de jaspe e a cidade de ouro puro, semelhante ao vidro puro. Os fundamentos das muros da cidade eram ornamentados com toda sorte de pedras preciosas. O primeiro fundamento era ornamentado com jaspe; o segundo com safira; o terceiro com calcedônia; o quarto com esmeralda; o quinto com sardônio; o sexto com sárdio; o sétimo com crisólito; o oitavo com berilo; o nono com topázio; o décimo com crisópraso; o décimo primeiro com jacinto; e o décimo segundo com ametista. As doze portas eram doze pérolas, cada porta feita de uma única pérola. A rua principal da cidade era de ouro puro, como vidro transparente. Não vi templo algum na cidade, pois o Senhor Deus todo-poderoso e o Cordeiro são o seu templo. A cidade não precisa de sol nem de lua para brilharem sobre ela, pois a glória de Deus a ilumina, e o Cordeiro é a sua candeia. As nações andarão em sua luz, e os reis da terra lhe trarão a sua glória. Suas portas jamais se fecharão de dia, pois ali não haverá noite. A glória e a honra das nações lhe serão trazidas. Nela jamais entrará algo impuro, nem ninguém que pratique o que é vergonhoso ou enganoso, mas unicamente aqueles cujos nomes estão escritos no livro da vida do Cordeiro. Então o anjo me mostrou o rio da água da vida que, claro como cristal, fluía do trono de Deus e do Cordeiro, no meio da rua principal da cidade. De cada lado do rio estava a árvore da vida, que dá doze colheitas, dando fruto todos os meses. As folhas da árvore servem para a cura das nações. Já não haverá maldição nenhuma. O trono de Deus e do Cordeiro estará na cidade, e os seus servos o servirão. Eles verão a sua face, e o seu nome estará em suas testas. Não haverá mais noite. Eles não precisarão de luz de candeia nem da luz do sol, pois o Senhor Deus os iluminará; e eles reinarão para todo o sempre." (Apocalipse 21:9-22:5; NVI)
Apesar desse relato ter fortes semelhanças com várias passagens do erroneamente denominado "Antigo Testamento", sabe-se que, nas Escrituras hebraicas, os velhos profetas costumavam se referir mais a um futuro terreno do povo de Israel. Ou seja, tratavam de coisas que aguardavam acontecer em suas próprias gerações ou nas futuras, muito embora os intérpretes cristãos tenham entendido que o cumprimento de tais promessas se dariam num momento além-túmulo. E, talvez, o livro de Daniel seja o que melhor se adequaria a esse entendimento escatológico da Igreja.
No entanto, é natural que seres conscientes de sua realidade finita na Terra desejem projetar para uma outra vida as melhores coisas daqui com a exclusão das ruins, sem que esse futuro desejado jamais cabe. E aí uma das primeiras observações de João sobre a nova terra seria a não existência mais do mar (Ap. 21:1).
Nas religiões antigas do Oriente Próximo, o mar era um símbolo do caos e da desordem que, por sua vez, contrastava-se com os deuses da ordem. Para os marinheiros, tratava-se de um ambiente de perigos reais e imaginários, onde a vida do navegante corria sério risco de perecer diante de uma eventual tempestade. Sem falar nos terríveis monstros marinhos habitando as profundezas do oceano.
A respeito dos mitos sobre o mar, não podemos nos esquecer do conhecido episódio dos evangelhos, em que Jesus acalma uma tempestade, o qual se tornou uma das mais inspiradoras narrativas bíblicas muito bem manejada nos sermões dos pregadores sobre como lidarmos com as dificuldades no cotidiano. Porém, na Nova Jerusalém de João, nenhum tipo de mar, seja literal ou simbólico, haverá mais.
Todavia, todo o anseio em nós existente por uma estabilidade eterna coexiste também com o desejo de superação dos limites. É quando nos cansamos de viver em terra firme e nos lançamos em uma aventura expedicionária pelos mares do desconhecido, tal como fizeram os nossos "descobridores" europeus no século XV. Ou ainda, como Eva quando a mulher considerou a árvore proibida do Jardim do Éden "desejável para dar entendimento" (Gn 3:6; ARA).
Talvez um dos nossos erros até hoje esteja sendo justamente em negar essa outra realidade existente em cada ser humano, deixando de considerar a positividade da aventura que é tão importante quanto à busca por uma estabilidade. Pois, se o homem estivesse ficado estagnado em seu jardim psíquico, com mais dificuldade teria ocorrido a sua evolução.
Assim sendo, se considerarmos que estamos sempre desejosos de viver numa "nova terra" e sob um "novo céu", poderemos compreender o porquê de não querermos mais permanecer no antigo. E aí a solução mais equilibrada me parece ser uma exposição ao caos, mas com a estabilidade de um moderno navio bem construído.
OBS: A imagem acima refere-se a uma tapeçaria do século XIV em que João assiste a descida da Nova Jerusalém vinda de Deus.
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