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quarta-feira, 2 de junho de 2021

Os municípios não podem definir quais atividades seriam serviços considerados essenciais na quarentena



Na página 5, da edição n.º 1364, do Diário Oficial do Município (DOM) de Mangaratiba, foi publicado o Decreto n.º 4.484, de 02 de junho de 2021, o qual, ao atualizar as medidas de prevenção contágio da COVID-19, autoriza, em seu artigo 1º, parágrafo 1º, a presença de público nos campos de futebol e similares até 50% (cinquenta por cento) da capacidade máxima do espaço esportivo.


Tal ato baseia-se na inconstitucional Lei Municipal n.º 1.339, de 27 de abril de 2021, publicada na página 4 da edição n.º 1340 do DOM, 28/04/2021, a qual declarou a prática de atividade física e de exercício físico como “serviço essencial”.


Ocorre que, embora a matéria em questão sobre a presença do público em estádios possa ser entendida como exclusiva do Poder Executivo, ainda assim deve-se observar que, nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), o prefeito deve observar critérios técnicos, científicos e a orientação das autoridades de saúde pública, no caso específico de cada situação. Nunca se embasando numa lei local de iniciativa parlamentar como foi o caso do ato aqui mencionado.


Embora pareça ser de indiscutível interesse social proporcionar às pessoas saúde e qualidade de vida por meio da atividade física, no intuito de reconhecer o exercício físico como essencial, permitindo a atividade física durante essa fase de distanciamento social controlado, devido à pandemia, eis que o legislador municipal de Mangaratiba incorreu no vício de inconstitucionalidade, por ferir uma competência que é privativa do Estado e da União.


Em atenção precípua ao direito à vida e à saúde, entende-se que o sistema de distanciamento implantado em todo o Estado do Rio de Janeiro deve ser rigorosamente obedecido por cada um dos seus municípios. Até mesmo porque, infelizmente, o enfrentamento à pandemia não é uma exclusividade de Mangaratiba de modo que a Prefeitura só será bem sucedida quando houver justa cooperação, no âmbito de todos os entes federativos, com absoluto respeito aos mecanismos constitucionais de equilíbrio institucional e manutenção da harmonia e independência entre os poderes. 


Desse modo, a intenção do legislador local de proteger o direito fundamental à saúde, por meio do exercício físico, acaba, pois, é desprotegendo e desprestigiando o próprio direito à saúde de forma coletiva, já que a referida lei intenta criar uma exceção permanente, vigente tão somente no Município de Mangaratiba.


Frise-se que nem o enfrentamento à pandemia, nem o direito fundamental ao livre exercício da atividade física, e nem mesmo o direito fundamental à saúde, seriam exclusivos do Município de Mangaratiba, o qual se vê, portanto, absolutamente incompetente para criar suas próprias exceções e definir o que é ou não atividade essencial, em dissonância ao sistema de enfrentamento vigente e em inegável prejuízo ao próprio esforço conjunto dos demais Entes federados, não encontrando fundamento nos incisos I e II do artigo 30 da Constituição Federal, pois, ao que se propõe, vai muito além de eventual interesse local e suplementação da legislação federal e estadual.


Assim sendo, o objetivo visado na referida lei local afigura-se flagrantemente inconstitucional. Pois, à medida em que as mais complexas decisões restritivas adotadas, notadamente pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, baseiam-se, exaustivamente, em fundamentados estudos técnico-científicos multidisciplinares, não há como o Município de Mangaratiba, mesmo que se valendo de sua autonomia legislativa, amparada em suposto interesse local, carente, contudo, de qualquer amparo técnico nesse sentido, engendrar questionável subterfúgio para criar especiais exceções às regras a todos impostas.


No presente caso, a atividade em referência no Decreto, a ser autorizada por meio de lei municipal, tem o potencial de afastar-se das diretrizes estabelecidas pelo Estado ao abrandar a quarentena em relação aos serviços não essenciais, colidindo diretamente com a opção adotada pelo legislador federal e estadual. Logo, os dispositivos normativos almejados no ato violam o princípio federativo, invadindo a esfera de competência legislativa da União e do Estado em matéria de saúde. 


Ressalte-se que, diante das consequências que a medida pode acarretar sobre direitos e liberdades fundamentais das pessoas por elas afetadas (daí o resguardo do exercício e do funcionamento dos serviços públicos e das atividades essenciais), torna-se fundamental o respeito ao estabelecimento de um padrão uniforme de funcionamento. Ou seja, o tratamento normativo do resguardo de serviços e atividades de caráter essencial, no contexto de implementação de medidas voltadas à mitigação das consequências da pandemia do coronavírus, há de se dar de forma linear e coordenada em todo o território nacional ou pelo menos regional (Estado), sendo, portanto, questão inerente à norma geral sobre proteção da saúde. Caso contrário, haverá potencial prejuízo à população afetada em virtude da legitimação de uma multiplicidade de normas municipais em dissonância com as diretrizes e condicionamentos estabelecidos na legislação estadual e federal. 


Faltam argumentos para dizer que a matéria regulada no ato normativo local estaria dentro da competência concorrente municipal para legislar sobre proteção e defesa da saúde. Pois a legislação federal e a estadual sobre a matéria expressamente autorizam os municípios a legislarem sobre o tema, de modo a estabelecer medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus visando dar maior proteção à saúde, inclusive ampliando restrições, sem admitir, entretanto, a diminuição da proteção assegurada. 


Registre-se que ao município não se permite, a pretexto de exercer competência suplementar, com fundamento no art. 30, II, da Constituição da República, sobrepor por meio de normas locais a regulamentação da União e do Estado, estabelecendo medidas desarrazoadas ou mais brandas no tocante à quarentena, como no caso em análise. 


Desse modo, a norma municipal, no contexto envolvendo a pandemia do COVID-19, não poderá contrariar normas do Estado do Rio de Janeiro, podendo apenas suplementá-la para intensificar o grau de proteção dos direitos fundamentais à vida e à saúde, que possuem maior densidade que os demais. 


Pode-se dizer que o abrandamento de medidas de distanciamento social, como objetiva indiretamente a lei local em comento, não se mostra, pois, razoável e, ponderado, contraria também a Constituição Estadual, visto que substitui uma estratégia aceita como adequada para preservar um maior número de vidas, em observância das orientações da comunidade científica, por uma estratégia que arrefece inegavelmente o êxito no combate da pandemia. 


Desse modo, a lei municipal de Mangaratiba padece então de inconstitucionalidade material! 


Além disso, diga-se de passagem que, em decisão de 08 de março de 2021, o Exmo. Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Fux, cassou a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que autorizava o Município paulista de São José dos Campos a sair da fase mais restritiva da pandemia, por representar potencial risco de violação à ordem e à saúde pública,  constatando a necessidade de harmonia e coordenação entre as ações públicas dos diversos entes federativos e salientou que as medidas governamentais para o enfrentamento da pandemia extrapolam em muito o mero interesse local. Segundo ele, o decreto estadual já teria sido reconhecido como proporcional e razoável. 


Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2012112-35.2021.8.26.0000, ajuizada pelo Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, tendo por objeto o Decreto nº 15.247, de 24 de janeiro de 2021, do Município de Bauru, na parte que autoriza o abrandamento da quarentena de que trata o Decreto Estadual 64.881/2020 (e alterações posteriores), mediante autorização de retomada de serviços e atividades não essenciais durante a pandemia do Covid 19 (artigo 2º), restou consagrado que os municípios não podem se afastar das diretrizes estabelecidas pela União e pelo Estado para proteção à saúde decorrente da pandemia, cabendo-lhes apenas suplementá-las para o fim de intensificar o nível de proteção, consignando que o abrandamento de medidas de distanciamento social, como determinado na norma municipal, em descompasso com as orientações da comunidade científica, coloca em risco os direitos fundamentais de proteção à vida e à saúde, além de não atender aos princípios da prevenção e precaução e, além disso, o abrandamento das medidas de isolamento social não se mostra razoável e ponderado, contrariando os artigos 111 e 144 da Constituição Estadual de São Paulo, visto que substitui uma estratégia aceita como adequada para preservar um maior número de vidas por uma estratégia que arrefece inegavelmente o êxito no combate da pandemia, daí porque a inconstitucionalidade da norma impugnada, por ofensa às disposições dos artigos 111, 144, 219, parágrafo único, 1, e 222, III, da Constituição Estadual e artigo 24, inciso XII, da Constituição Federal. 


Desse modo, podemos dizer que um município, ao reconhecer uma atividade como essencial, o que se objetiva é impedir seu fechamento. Ou, em outras palavras, permitindo o seu funcionamento e, com isso, reduzindo a proteção fixada, em evidente contrariedade à legislação em vigência. 


Portanto deve-se reconhecer que o legislador federal impôs uma espécie de bloqueio legislativo ao legislador municipal, ao qual não se autoriza, nem mesmo a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse local, flexibilizar os limites determinados na quarentena decretada em âmbito estadual, quer seja a suspendendo, quer seja ampliando as atividades e serviços estabelecidos pelo decreto estadual como essenciais, ou mesmo estimulando a circulação de pessoas para além das atividades ali discriminadas. 


Em outras palavras, aos municípios brasileiros não é autorizado afastar-se das diretrizes estabelecidas pela União e pelo Estado para proteção à saúde decorrente da pandemia, cabendo-lhe apenas suplementá-las nos termos dos artigos 30, I e II, da Constituição Federal para o fim de intensificar o nível de proteção por elas estabelecido, mediante a edição de atos normativos que venham a torná-las eventualmente mais restritivas. 


Assim sendo, por entender como violadora da Carta Magna a Lei n.º 1.339, de 27 de abril de 2021, do Município de Mangaratiba, bem como o Decreto Municipal n.º 4.484, de 02 de junho de 2021, que nela se baseia, passando este a padecer do mesmo vício de inconstitucionalidade, decidi tomar providências encaminhando uma representação ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, a fim de que este adote as medidas que forem cabíveis.

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