Era uma vez uma cidade chamada Corrupitiba, situada num país chamado Lisarb, cuja população era de 40 mil habitantes e 48 mil eleitores. Era um lugar muito bonito com praias, cachoeiras, montanhas e ilhas, além de monumentos históricos, e que havia sido um destino turístico no passado, mas acabou se degradando com o tempo por falta de saneamento básico e de projetos de desenvolvimento.
O município era muito rico, pois recebia altos valores em royalties e repasses do governo federal. Porém, apesar da arrecadação anual ser quase bilionária, o equivalente hoje a R$ 700 milhões, seu povo vivia na pobreza e quase nenhum negócio privado prosperava mais.
Infelizmente, as falcatruas prevaleciam na política de Corrupitiba assim como em praticamente todas as cidades de Lisarb, sendo que o fato do município obter uma alta receita anual atraía ainda mais bandidos para a política local. Inclusive pessoas vindas de fora transferiam seus títulos para votar ou se candidatar na cidade.
Certa vez, todos os municípios de Lisarb tiveram eleições para a escolha de cada prefeito e dos seus vereadores. Tratou-se do pleito mais concorrido e polarizado de Corrupitiba em que um voto para prefeito chegou a custar o equivalente a R$ 500,00 e para uma das treze vagas de vereador os aliciadores pagavam até R$ 300,00.
Ora, num bairro periférico da cidade, morava um homem chamado José, um ex-pescador de condição humilde. Tinha ele uma companheira, dois filhos, um gato e um cachorro. Estava terminando de construir a sua casa com dificuldades e vivia fazendo "bicos" para sobreviver. Em alguns meses, a sua renda ultrapassava o salário mínimo, quando aproveitava o movimento turístico do verão para vender alguma coisa na praia, mas, na maior parte do ano, penava para sobreviver.
No dia das eleições, um vizinho de José chamado Ronaldo, pensando em ajudá-lo, sugeriu que vendesse o voto para ganhar R$ 800,00 assim como sua esposa Maria e o filho mais velho Pedro que fizera 16 anos pouco antes de encerrar o alistamento eleitoral.
- Meu amigo, tem um homem de camisa amarela, cem metros antes da escola da sua filha, que está pagando R$ 500,00 caso se comprometa em votar no prefeito João do Matadouro e mais R$ 300,00 para o candidato a vereador Robertinho da Padaria. Se a sua esposa e seu filho se comprometerem, serão R$ 2.400,00 pra família de vocês.
Ao ouvir a proposta, José ficou pensativo. Afinal, ele estava precisando tocar sua obra e pagar umas contas, de modo que deu a seguinte resposta:
- Seu Ronaldo, acho que vou aceitar e pedirei para a minha esposa e o meu filho votarem nesse candidato, mas não quero que saibam que irei pegar o dinheiro. Pedirei para eles votarem nesses dois nomes.
Sem saber do acordo do marido, Maria aceitou mudar sua intensão de voto. Já o filho Pedro questionou o pai, porém depois aceitou:
- Pai, eu pretendia votar na professora da minha escola que é candidata. O senhor tinha falado que iria dar um apoio a ela.
- Falei sim, filho, mas vai ser melhor para a família da gente votar no Robertinho. Já o candidato a prefeito que estávamos apoiando, soube que ele não vai ganhar. Confia em mim.
Maria, supondo que o marido poderia se beneficiar através de um cargo na Prefeitura, ou pegar uma assessoria na Câmara, persuadiu mais ainda o filho do casal a mudar o voto para os novos candidatos do pai:
- Filho, você sabe que seu pai não trabalha de carteira assinada e você já está em idade de procurar emprego. Se o seu pai mudou o voto é porque sabe o que está fazendo e não podemos ignorar o quanto um vereador amigo é importante para ajudar a conseguir um cargo na administração municipal através da nomeação do prefeito.
Com isso, toda a família votou nos candidatos indicados pelo vizinho, seu José recebeu o dinheiro por cada sufrágio vendido e, com a grana nas mãos, pôde pagar suas dívidas bem como adiantar bem a obra.
O João do Matadouro se reelegeu prefeito e o Robertinho da Padaria também veio a conquistar a cobiçada cadeira no Legislativo. A convite do vizinho, a família ainda foi ao churrasco da vitória festejar juntamente com os apoiadores dos candidatos onde viram não só os assessores do político como também empresários e milicianos que possuem contratos diversos com a Prefeitura, além de muitas autoridades corruptas. Já a professora de Pedro, infelizmente, não conseguiu ser eleita, apesar de haver conquistado 200 votos e ficado como segunda suplente num partido de oposição que só elegeu um vereador.
Passaram dois meses e três semanas e, finalmente veio a posse dos eleitos no primeiro dia do ano seguinte. A família compareceu ao evento, porém foram todos ignorados e nem conseguiram chegar perto do prefeito ou do vereador. Ainda assim, Maria voltou para casa acreditando que o marido iria conseguir um emprego para ele, para ela, ou para o filho.
Durante vários dias seguidos, Maria perturbou a paciência de José para que ele procurasse o vereador e fosse até o seu gabinete cobrar o emprego, mas o marido se recusou. Aí ela foi até à Câmara, mas o assessor disse que o chefe estava numa reunião, tendo anotado o sue número de telefone para retornar o contato, o que não ocorreu.
Insistente, a mulher também se dirigiu à Prefeitura, porém nem conseguiu passar da recepção porque a agenda do prefeito estava com o atendimento ao público suspenso. Nem mesmo os assessores do prefeito lhe deram atenção e ela foi orientada a procurar a Ouvidoria, caso tivesse alguma demanda sobre os maus serviços municipais.
Em casa, sendo questionado pela esposa, José respondeu que não negociou nenhum cargo com o vereador no dia da eleição e também omitiu da esposa que havia vendido o seu voto, o dela e do filho pois, no fundo, sentia muita vergonha do que havia feito. Tão pouco desejava ver Pedro se tornando um eleitor corrupto numa idade ainda tão jovem.
Um ano se passou e Maria acabou engravidando sem que houvesse planejamento e, a princípio, nem se deu conta que havia concebido. Em razão da idade superior a 45 anos e do tratamento de saúde que fazia com medicamentos, não era recomendada a gestação de mais um bebê pois lhe traria riscos.
Contudo, semanas após à concepção, Maria descobriu incidentalmente a gravidez e resolveu ter o terceiro filho. José, a princípio, não gostou da ideia, porém acabou aceitando.
Infelizmente, Maria teve muitas dificuldades de conseguir fazer um acompanhamento decente na rede pública de saúde porque não encontrava vaga para o único ginecologista que atendia todo o Município somente no posto do bairro situado no outro lado de Corrupitiba. Os exames de ultrassom ela não pôde fazer porque precisava ser em outro município e o serviço de transporte de pacientes estava suspenso porque a viatura da Prefeitura se achava em manutenção há meses.
Por aqueles dias, os colégios tiveram as aulas paralisadas devido a uma greve de professores porque o piso do magistério não era pago e nem a revisão geral anual de todos os servidores públicos concursados. Além disso, faltavam aparelhos de ar condicionado, material escolar e equipamentos para as salas de aula, o que prejudicava o trabalho dos docentes.
No mês seguinte, por falta de dragagem num córrego próximo à residência da família, houve uma enchente que inundou a casa com danos à construção, aos móveis e aos eletrodomésticos, o que resultou num prejuízo de mais de R$ 5.000,00. Porém, nem José e nenhum outro vizinho conseguiram acesso ao auxílio assistencial oferecido pelo governo estadual porque a Prefeitura não estava cadastrada no programa e nem a Defesa Civil foi ao local fornecer laudos aos moradores.
Naqueles dias, José precisou tirar a segunda via de quase todos os seus documentos porque a enchente destruiu seus originais. Por conta disso, seu filho também não conseguiu passar na entrevista de emprego que tentava para trabalhar numa loja na cidade vizinha já que em Corrupitiba eram poucos os comerciantes que contratavam mão-de-obra.
Em alguns meses depois, quando a barriga de Maria estava maior, a família viveu mais um drama. Tendo problemas com pressão alta chegando a ter convulsões, a mulher precisou ser hospitalizada e foi diagnosticada com suspeita de eclâmpsia.
No entanto, a situação do hospital municipal estava bem crítica. Além de pacientes nos corredores, pois algumas enfermarias estavam insalubres, não tinha remédio, nem insumos e até mesmo anestesia faltava. Por sua vez, os agentes de saúde e os funcionários da enfermagem estavam com os salários e as férias atrasados, sendo poucos os médicos laborando na unidade.
Infelizmente, o bebê de Maria acabou falecendo em sua barriga e ela ficou em estado grave sem que fosse possível fazer qualquer procedimento de curetagem ou uma cesariana para extrair o feto já morto. Por dias, José ficou aguardando que a regulação encaminhasse sua esposa para o hospital de outra cidade e nada acontecia. Sem saber o que fazer, ele entrou em desespero.
Por orientação da professora de Pedro que viera candidata a vereadora nas eleições e não ganhou, o filho orientou o pai que pegasse um atestado médico sobre a necessidade de remoção da mãe para outro nosocômio melhor estruturado. E, com documento probatório em mãos, procurasse a Defensoria Pública a fim de conseguir uma vaga através de liminar judicial.
Durante a tarde, José foi visitar a esposa, porém o médico plantonista se recusou a fornecer o documento e respondeu que ele abrisse um protocolo na ouvidoria do hospital ou falasse direto com a assistente social que, naquela hora do dia, já não estava mais na unidade. Um agente de saúde sugeriu que a família procurasse a médica do plantão noturno que não se negaria a dar um laudo.
Pela manhã, José foi à Defensoria Pública e o funcionário cedido pela Prefeitura que trabalhava lá negou-se a atender com o argumento de que a defensora só teria vaga para três meses depois. Entretanto, uma estagiária, ao perceber que se tratava de um caso urgente, interviu na conversa e sugeriu que a família buscasse o plantão judiciário noturno na capital estadual.
Após pegar um dinheiro com um agiota do bairro, José viajou 200 quilômetros para ser atendido pelo defensor de plantão no Fórum da capital e precisou passar a madrugada em claro para voltar no outro dia fazendo baldeações entre várias cidades no percurso porque lhe custaria muito mais caro embarcar novamente num ônibus direto. Enquanto retornava, saiu a decisão judicial obrigando o município e o estado a transferirem Maria para um outro hospital, em 24 horas, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00.
Apesar de intimados, os secretários de saúde do estado e do município nada fizeram para cumprir a ordem e o diretor do hospital alegava que nenhuma ambulância da prefeitura estava funcionando. O processo foi remetido para o Fórum da cidade e lá ficou parado sem que a liminar fosse cumprida.
O quadro de Maria foi só piorando e, sendo já o sétimo dia de internação, estando a paciente num quadro gravíssimo, finalmente foi feita a sua remoção numa viatura estadual. Só que, durante o trajeto, ela veio a falecer e José foi comunicado para que fosse ao hospital da outra cidade com os documentos da esposa, a princípio sem saber do que se tratava.
Essa foi só mais uma das tristes histórias que aconteciam em Corrupitiba e em várias outras cidades de Lisarb, principalmente nos anos ímpares quando não havia eleições ordinárias. Poucos eleitores tinham a consciência do valor do voto pois os R$ 800,00 que os políticos pagavam para cada eleitor correspondia a menos de um mês de renda per capta, considerando a divisão de R$ 700 milhões pelo número de 40 mil habitantes e, depois, por 12, chegando a R$ 1.458,33 mensais.
Lamentavelmente, o dinheiro da cidade era gasto em obras superfaturadas e com materiais de má qualidade, assim como acontecia com os contratos de compras subfaturados, em que a maior quantidade dos produtos licitados não era entregue, razão pela qual faltavam merenda, medicamentos, material escolar, insumos, etc. Além do mais, a maior parte do recurso vivia comprometida com a extensa folha de pagamento de pessoal (mais de 50% da receita corrente líquida) onde até o ano da eleição mais de um terço dos 2.500 comissionados eram "fantasmas" residentes em outros municípios.
Ainda assim, todo ano eleitoral era uma farra em Corrupitiba, com pessoas sendo contratadas em excesso pela Prefeitura, muitas festas, obras de maquiagem nas praças e nas vias públicas, políticos doando cestas básicas e fazendo todo tipo assistencialismo, mais o dinheiro rolando solto no dia da votação, com o ilegal transporte de eleitores. E o mesmo acontecia na maioria das outras cidades de Lisarb, principalmente as de pequeno e médio portes.
Lendo essa história, se achou alguma semelhança com o seu município, saiba que não é mera coincidência...