Páginas

quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Alta hospitalar sem caminho de volta: a face invisível da exclusão no SUS



No Brasil, milhares de pessoas idosas, acamadas, com mobilidade reduzida ou em situação de extrema vulnerabilidade enfrentam um drama silencioso após sobreviverem a uma emergência médica: a alta hospitalar sem qualquer garantia de retorno seguro para casa.

O atendimento de urgência acontece, a vida é preservada — mas, ao final, o Estado muitas vezes se retira. O paciente recebe alta e, sem condições físicas, financeiras ou familiares, é simplesmente deixado à própria sorte.

Essa realidade expõe uma das maiores contradições do sistema de saúde brasileiro: salvar não basta; é preciso cuidar até o fim do ciclo assistencial.


Alta hospitalar não encerra o dever do Estado

A Constituição Federal é clara ao afirmar que a saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196). Esse dever não se limita ao momento do socorro, da internação ou do procedimento médico.

No âmbito do SUS, a atenção à saúde deve ser:


  • integral,
  • contínua,
  • universal,
  • igualitária,
  • e orientada pela dignidade da pessoa humana.


A alta hospitalar, portanto, não pode ser tratada como um “ponto final administrativo”, mas como uma etapa do cuidado, que exige condições mínimas de segurança, especialmente quando o paciente:


  • não anda,
  • não se comunica adequadamente,
  • depende de terceiros,
  • ou não tem recursos para custear transporte especializado.


Negar esse suporte, em muitos casos, equivale a interromper o tratamento por vias indiretas.


Transporte sanitário não é luxo: é instrumento de acesso à saúde

O SUS reconhece o transporte sanitário como parte da rede de atenção. Embora ambulâncias sejam prioritariamente destinadas a urgências, não existe vedação absoluta ao seu uso para transporte assistido, desde que:


  • haja indicação clínica,
  • não se comprometa o atendimento emergencial,
  • e o paciente não tenha meios próprios de deslocamento.


O problema não é a ausência de recursos, mas a ausência de políticas públicas claras.

Quando o Estado se omite, transfere o ônus ao paciente pobre, idoso ou fragilizado — justamente quem mais depende da proteção pública.


O que dizem os tribunais: o Judiciário tende a proteger o paciente

O Poder Judiciário brasileiro, de modo geral, interpreta o direito à saúde de forma ampliada, sobretudo quando estão em jogo:


  • pessoas idosas,
  • pessoas com deficiência,
  • pacientes acamados,
  • famílias em situação de vulnerabilidade social.


As decisões costumam se apoiar em três pilares:


  1. Dignidade da pessoa humana;
  2. Integralidade da atenção à saúde;
  3. Proibição de proteção insuficiente por parte do Estado.


Em ações judiciais, é comum o entendimento de que o dever estatal não se esgota no atendimento hospitalar, podendo incluir:


  • fornecimento de transporte assistido,
  • encaminhamento à atenção domiciliar,
  • ou adoção de medidas que viabilizem a continuidade do cuidado.


Minas Gerais e Rio de Janeiro: avanços e limites

🔹 Minas Gerais

Minas avançou ao inserir, em sua Constituição Estadual, a previsão de transporte sanitário eletivo intermunicipal para pacientes do SUS.
Embora a norma não trate expressamente do retorno domiciliar dentro do mesmo município, ela reforça um princípio importante: o deslocamento pode ser parte do tratamento, e não um problema privado do paciente.

Na prática, o cumprimento ainda é desigual, e muitos casos só se resolvem com:


  • judicialização,
  • atuação do Ministério Público,
  • ou pressão dos Conselhos de Saúde.


🔹 Estado do Rio de Janeiro

Aqui no Rio, não há uma norma estadual geral que assegure o transporte domiciliar pós-alta. O que existe é:


  • forte dependência da organização municipal;
  • judicialização recorrente em casos concretos;
  • e decisões judiciais que reconhecem o direito quando comprovada a incapacidade do paciente e a omissão do poder público.


Alguns municípios brasileiros — inclusive fora desses estados — se destacam por leis locais ou programas de transporte sanitário e atenção domiciliar, que funcionam como boas práticas e demonstram que o problema é menos jurídico e mais político-administrativo.


Por que é urgente regulamentar esse direito?

A ausência de leis, portarias e protocolos claros gera:


  • decisões arbitrárias,
  • desigualdade entre municípios,
  • sofrimento evitável,
  • e sobrecarga das famílias.


É fundamental que União, estados e municípios:


  • aprovem leis e atos administrativos específicos;
  • estabeleçam critérios objetivos;
  • garantam alternativas reais para pacientes vulneráveis;
  • e deem transparência às decisões.


Sem isso, o direito à saúde permanece formal, mas incompleto.


O que fazer quando o serviço é negado?

Pacientes e familiares não estão desamparados. Diante da ausência de transporte ou assistência após a alta, é possível:


  1. Solicitar explicações formais à Secretaria de Saúde (Lei de Acesso à Informação);
  2. Registrar demanda na Ouvidoria do SUS;
  3. Procurar o Conselho Municipal de Saúde, que exerce controle social;
  4. Buscar a Defensoria Pública, especialmente em casos de vulnerabilidade;
  5. Acionar o Ministério Público, quando houver omissão sistemática;
  6. Reunir documentos médicos que comprovem a incapacidade de locomoção.


A mobilização institucional é muitas vezes o que transforma um problema invisível em política pública.


Cuidar até o fim é dever do Estado!

Uma sociedade que salva vidas, mas abandona pessoas na porta do hospital, falha em sua missão constitucional.

Garantir que um paciente volte para casa com dignidade não é favor, nem privilégio.
É consequência lógica do direito à saúde, da solidariedade social e do compromisso civilizatório inscrito na Constituição.

O SUS só cumpre seu papel quando ninguém fica para trás — nem mesmo depois da alta.


📝Nota sobre a Portaria nº 2.436/2017 (PNAB)

A Portaria nº 2.436/2017, do Ministério da Saúde, aprovou a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e estabeleceu as diretrizes para a organização da Atenção Básica na Rede de Atenção à Saúde (RAS) do SUS. O ato normativo reafirma a Atenção Básica como porta de entrada preferencial do sistema, bem como ordenadora do cuidado e coordenadora da atenção integral e contínua aos usuários.

A PNAB atribui aos Municípios responsabilidades centrais na gestão do cuidado, incluindo a organização dos fluxos de referência e contrarreferência, o gerenciamento responsável dos encaminhamentos e o fortalecimento da Estratégia Saúde da Família (ESF) como eixo prioritário do modelo assistencial. Nesse contexto, cabe ao ente municipal articular os diferentes pontos da rede — serviços ambulatoriais, hospitalares e de atenção domiciliar — assegurando integralidade, longitudinalidade e vínculo com o paciente.

Embora a Portaria não trate de forma expressa do transporte pós-alta hospitalar, ela reforça o dever de continuidade assistencial, especialmente por meio da Atenção Domiciliar, prevista em normas complementares como a Portaria nº 963/2013. Tal diretriz impõe a necessidade de articulação intersetorial e intra-rede para evitar rupturas no cuidado de pessoas em situação de vulnerabilidade, como idosos, acamados ou pacientes com mobilidade reduzida.

Assim, a PNAB fornece base normativa relevante para a responsabilização do poder público em casos de falhas na alta hospitalar, inclusive em demandas judiciais, ao concretizar o princípio da integralidade da atenção à saúde, previsto no art. 198 da Constituição Federal de 1988.

Nenhum comentário:

Postar um comentário