A recente apreensão, por autoridades dos Estados Unidos, de um navio petroleiro transportando petróleo venezuelano com destino a Cuba não é apenas mais um episódio de tensão geopolítica. Trata-se de um fato grave, que lança sérias dúvidas sobre o respeito do governo Donald Trump aos fundamentos do Direito Internacional e à própria ordem multilateral construída no pós-guerra.
O episódio, amplamente noticiado pela imprensa internacional, teria ocorrido em alto-mar, com base exclusiva em sanções econômicas unilaterais impostas pelos Estados Unidos. Não houve autorização do Conselho de Segurança da ONU, tampouco consentimento do Estado da bandeira do navio. Ainda assim, Washington decidiu agir como se sua legislação interna tivesse alcance planetário.
Esse comportamento não é um detalhe técnico: ele atinge o coração do Direito do Mar. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS) estabelece, de forma clara, que embarcações em alto-mar estão submetidas à jurisdição exclusiva do Estado cuja bandeira ostentam. As exceções a essa regra são taxativas — pirataria, tráfico de escravos, rádio pirata, navio sem nacionalidade — e nenhuma delas se confunde com a suposta violação de sanções unilaterais.
Quando um Estado ignora essas normas e decide apreender um navio estrangeiro com base apenas em sua própria lei, abre-se um precedente perigoso: o da substituição do Direito pela força. Se todos os países resolvessem agir da mesma forma, os mares deixariam de ser espaço de cooperação e liberdade de navegação para se tornarem território de disputas arbitrárias, regidas pela lei do mais forte.
Outro ponto central é a natureza das sanções aplicadas pelos Estados Unidos contra Venezuela e Cuba. Diferentemente das sanções impostas pelo Conselho de Segurança da ONU, essas medidas não possuem legitimidade universal. São decisões políticas internas, que não podem, à luz do Direito Internacional, produzir efeitos coercitivos automáticos sobre terceiros Estados ou sobre o comércio internacional em alto-mar.
Não por acaso, mecanismos das próprias Nações Unidas — como o Relator Especial sobre medidas coercitivas unilaterais — vêm reiteradamente alertando que esse tipo de sanção, quando aplicada de forma extraterritorial, viola princípios básicos como a soberania, a não intervenção e o direito ao desenvolvimento. No caso concreto, os impactos recaem não sobre governos abstratos, mas sobre populações civis, que dependem de energia, transporte e cooperação econômica para garantir condições mínimas de vida.
Chamar esse tipo de prática de “pirataria” pode não ser tecnicamente preciso no sentido jurídico estrito, já que a pirataria pressupõe atos privados. Mas, no plano político e moral, a expressão cumpre um papel simbólico importante: denuncia a apropriação indevida de bens alheios em alto-mar, sem respaldo no sistema jurídico internacional.
O mais preocupante é a naturalização desse comportamento. Quando uma potência global se coloca acima das regras que ajudou a construir, enfraquece-se todo o edifício do multilateralismo. Hoje é um navio venezuelano; amanhã pode ser qualquer outro país que não se alinhe aos interesses de quem detém maior poder militar e econômico.
Diante disso, cabe à comunidade internacional — e também à sociedade civil — não tratar o episódio como algo trivial. Questionar, denunciar e debater esses atos é fundamental para preservar a ideia de que as relações entre os Estados devem ser regidas pelo Direito, e não pela força. Caso contrário, abre-se caminho para um mundo em que tratados viram papel morto e a legalidade internacional se torna apenas um discurso conveniente, descartável quando deixa de servir aos interesses das grandes potências.
Defender o Direito Internacional não é defender governos específicos, mas sim proteger um mínimo de previsibilidade, justiça e equilíbrio nas relações globais. Quando esse direito é violado, todos perdem — especialmente os mais vulneráveis.

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