Rodrigo Tanaka, bisneto de japoneses nascido em São Paulo, desembarcou no aeroporto de Narita com o coração apertado e a Bíblia debaixo do braço. Neo-pentecostal convicto, tinha uma missão clara: levar a “verdadeira fé” aos descendentes de seus ancestrais. Tóquio, com suas luzes de néon e multidão apressada, parecia-lhe ao mesmo tempo estranha e familiar.
Nos primeiros dias, Rodrigo percorria bairros comerciais e templos, tentando iniciar conversas sobre Jesus. Cada tentativa encontrava sorrisos gentis, mas recusas educadas. Ele via indiferença, mas aos poucos percebeu algo diferente: os japoneses valorizavam a convivência pacífica entre crenças diferentes, e sua fé era respeitada, mas não imposta.
Foi em um pequeno café em Shinjuku que conheceu Aiko, jovem de Hiroshima de olhos claros e sorriso tranquilo. Conversaram sobre trabalho, música e, inevitavelmente, religião. Rodrigo, ansioso para explicar sua fé, ficou surpreso quando Aiko contou que sua família praticava xintoísmo e budismo.
- “Então vocês acreditam em tudo ao mesmo tempo?” — perguntou ele.
- “Não é questão de acreditar em tudo,” respondeu Aiko, “é questão de viver cada momento respeitando o que é sagrado para cada um.”
Rodrigo ficou intrigado. Para ele, fé era dogma e exclusividade. Mas o que via nos relatos de Aiko era diferente: o xintoísmo no Japão lida com a vida, a natureza e festividades, enquanto o budismo se ocupa da morte e da reflexão espiritual. Cada prática cumpria sua função, coexistindo de maneira harmoniosa.
Nas semanas seguintes, Rodrigo viajou com Aiko a Hiroshima. Conheceu os pais dela, que mantinham um kamidana (pequeno altar xintoísta em casa) para oferecer orações aos kami — espíritos da natureza ou ancestrais — e um butsudan (altar budista) para honrar falecidos. Ele participou de festivais locais, ou matsuri, que celebravam os deuses locais com dança, música e oferendas. Também assistiu a funerais em templos budistas, marcados por silêncio, reverência e meditação.
Um dia, Aiko o levou a conhecer seu tio-avô, Kenji, sobrevivente da bomba atômica de 1945. Sentados sob cerejeiras em flor, Kenji contou:
- “Após a guerra, os americanos ocuparam o país. O xintoísmo estatal, aquele que dizia que o imperador era divino, foi abolido. Mas o povo podia continuar praticando xintoísmo e budismo livremente. Aprendemos que a fé é uma escolha, não uma imposição.”
Rodrigo sentiu o peso da história e da resiliência de um povo. Começou a refletir: sua fé não precisava ser uma espada contra o outro; podia ser uma bússola interior, coexistindo com respeito e tolerância.
Ele aprendeu sobre o hatsumode, a visita aos santuários no Ano Novo, e sobre os rituais de casamento e bênçãos familiares; sobre a importância de não conflitar crenças e de participar de celebrações comunitárias sem perder sua própria fé. A ideia de “converter” alguém aos poucos perdeu sentido.
Meses depois, Rodrigo e Aiko caminharam pelo templo xintoísta local, rodeados por lanternas de pedra, sons suaves de sinos e folhas de cerejeira caindo. Ele não via mais um “pagão” ou “desconhecido”, mas alguém cuja espiritualidade complementava a dele. Casaram-se ali, com monges budistas recitando orações discretas, e Rodrigo sentiu que fé verdadeira também é tolerância, amor e convivência pacífica.
De volta a Tóquio, Rodrigo ainda frequentava sua igreja, mas agora com o coração mais leve. Compreendia que a religião no Japão não era sobre dominação ou conversão, mas sobre respeito, tradição e harmonia. Aprendeu que podia ser um homem de fé sem querer moldar o mundo inteiro à sua visão, e que a diversidade espiritual era um presente que enriquecia a vida cotidiana.
E assim, entre santuários xintoístas, templos budistas e a vida moderna de Tóquio, Rodrigo encontrou não apenas trabalho e família, mas uma nova forma de enxergar Deus e o mundo, aprendendo que cada caminho sagrado pode coexistir em paz quando guiado pela compreensão e pelo amor.
📝 Notas culturais e religiosas explicadas no conto
- Kami: espíritos da natureza, ancestrais ou divindades do xintoísmo.
- Kamidana: pequeno altar doméstico xintoísta, usado para orações e oferendas.
- Butsudan: altar budista doméstico para honrar antepassados falecidos.
- Matsuri: festivais locais celebrando deuses ou espíritos, com rituais, danças e comida.
- Hatsumode: visita anual a santuários xintoístas no Ano Novo, para bênçãos e desejos.

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