O racismo religioso no Brasil é uma das expressões mais persistentes e invisibilizadas do racismo estrutural. Embora a Constituição Federal de 1988 consagre a liberdade religiosa e assegure a imunidade tributária aos “templos de qualquer culto”, a realidade vivida pelas religiões de matriz africana revela uma distância profunda entre o texto constitucional e sua aplicação concreta. Terreiros de Candomblé, Umbanda, Batuque, Tambor de Mina e outras tradições afro-brasileiras continuam enfrentando obstáculos burocráticos, discriminação institucional e violência simbólica e material que negam, na prática, direitos que são formalmente garantidos.
1. O racismo religioso como herança da escravidão
A perseguição às religiões de matriz africana no Brasil não é um fenômeno recente. Desde o período colonial, práticas religiosas africanas foram criminalizadas, associadas à feitiçaria, à desordem moral e à ameaça à ordem pública. O Código Penal do Império e, posteriormente, o Código Penal da República, trataram essas manifestações como crime ou contravenção. A repressão policial aos terreiros atravessou todo o século XX, mesmo após a separação formal entre Estado e Igreja.
Essa trajetória produziu efeitos duradouros. Diferentemente de igrejas cristãs, que se institucionalizaram com personalidade jurídica, registros patrimoniais e reconhecimento estatal, muitos terreiros se organizaram como espaços comunitários, familiares e ancestrais, marcados pela oralidade, pela circularidade do saber e pela resistência cultural. Essa diferença histórica é frequentemente ignorada pelo poder público, que exige dos terreiros padrões formais de documentação e organização moldados a partir de uma lógica eurocristã.
2. Racismo religioso hoje: entre a violência e a negação de direitos
Atualmente, o racismo religioso se manifesta de forma múltipla: ataques físicos a terreiros, destruição de imagens, discursos de ódio, expulsões de comunidades por grupos fundamentalistas e, de forma mais silenciosa, pela negação de direitos administrativos e tributários. Quando um município cobra IPTU de um terreiro ou nega o reconhecimento de sua imunidade tributária, não se trata apenas de um ato burocrático: trata-se de uma continuidade histórica da marginalização dessas religiões.
A Constituição é clara ao afirmar que a imunidade tributária alcança templos de qualquer culto, como instrumento de proteção à liberdade religiosa. No entanto, na prática administrativa municipal, essa garantia muitas vezes se transforma em um privilégio seletivo, acessível apenas a instituições religiosas que se enquadram em formatos tradicionais, formais e hegemônicos.
3. A dívida histórica do Estado brasileiro com os afrodescendentes
Reconhecer a imunidade tributária dos terreiros não é concessão nem favor: é parte de uma dívida histórica do Estado brasileiro com os povos afrodescendentes. As religiões de matriz africana foram fundamentais para a preservação da identidade, da memória e da resistência cultural negra diante da escravidão, do racismo e da exclusão social.
Negar direitos a esses espaços é perpetuar desigualdades históricas e reforçar a lógica de que determinadas expressões religiosas são menos legítimas do que outras. A efetivação da imunidade tributária deve ser compreendida como política de reparação institucional, em consonância com os princípios constitucionais da dignidade humana, da igualdade material e do combate ao racismo.
4. O papel estratégico dos municípios
Embora a imunidade tributária seja uma limitação constitucional ao poder de tributar, sua efetivação cotidiana passa, em grande medida, pelos municípios, especialmente no que se refere ao IPTU. Por isso, é no âmbito municipal que se concentram muitos dos entraves – e também as maiores possibilidades de transformação. Neste sentido, seguem propostas para facilitar o reconhecimento da imunidade tributária dos terreiros:
5. Conclusão
O combate ao racismo religioso no Brasil exige mais do que discursos genéricos sobre tolerância. Exige decisões administrativas concretas, políticas públicas afirmativas e o reconhecimento de que a neutralidade formal do Estado não pode servir de escudo para a reprodução de desigualdades históricas.
Garantir a imunidade tributária aos terreiros de religiões de matriz africana é cumprir a Constituição, promover justiça histórica e fortalecer a democracia. Enquanto esse direito continuar sendo negado ou dificultado, o Brasil seguirá em dívida com sua própria história e com milhões de cidadãos cuja fé, cultura e ancestralidade sustentaram – e ainda sustentam – a resistência contra o racismo estrutural.

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