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domingo, 14 de dezembro de 2025

Racismo religioso no Brasil: dívida histórica e caminhos para a efetivação da imunidade tributária dos terreiros



O racismo religioso no Brasil é uma das expressões mais persistentes e invisibilizadas do racismo estrutural. Embora a Constituição Federal de 1988 consagre a liberdade religiosa e assegure a imunidade tributária aos “templos de qualquer culto”, a realidade vivida pelas religiões de matriz africana revela uma distância profunda entre o texto constitucional e sua aplicação concreta. Terreiros de Candomblé, Umbanda, Batuque, Tambor de Mina e outras tradições afro-brasileiras continuam enfrentando obstáculos burocráticos, discriminação institucional e violência simbólica e material que negam, na prática, direitos que são formalmente garantidos.


1. O racismo religioso como herança da escravidão

A perseguição às religiões de matriz africana no Brasil não é um fenômeno recente. Desde o período colonial, práticas religiosas africanas foram criminalizadas, associadas à feitiçaria, à desordem moral e à ameaça à ordem pública. O Código Penal do Império e, posteriormente, o Código Penal da República, trataram essas manifestações como crime ou contravenção. A repressão policial aos terreiros atravessou todo o século XX, mesmo após a separação formal entre Estado e Igreja.

Essa trajetória produziu efeitos duradouros. Diferentemente de igrejas cristãs, que se institucionalizaram com personalidade jurídica, registros patrimoniais e reconhecimento estatal, muitos terreiros se organizaram como espaços comunitários, familiares e ancestrais, marcados pela oralidade, pela circularidade do saber e pela resistência cultural. Essa diferença histórica é frequentemente ignorada pelo poder público, que exige dos terreiros padrões formais de documentação e organização moldados a partir de uma lógica eurocristã.


2. Racismo religioso hoje: entre a violência e a negação de direitos

Atualmente, o racismo religioso se manifesta de forma múltipla: ataques físicos a terreiros, destruição de imagens, discursos de ódio, expulsões de comunidades por grupos fundamentalistas e, de forma mais silenciosa, pela negação de direitos administrativos e tributários. Quando um município cobra IPTU de um terreiro ou nega o reconhecimento de sua imunidade tributária, não se trata apenas de um ato burocrático: trata-se de uma continuidade histórica da marginalização dessas religiões.

A Constituição é clara ao afirmar que a imunidade tributária alcança templos de qualquer culto, como instrumento de proteção à liberdade religiosa. No entanto, na prática administrativa municipal, essa garantia muitas vezes se transforma em um privilégio seletivo, acessível apenas a instituições religiosas que se enquadram em formatos tradicionais, formais e hegemônicos.


3. A dívida histórica do Estado brasileiro com os afrodescendentes

Reconhecer a imunidade tributária dos terreiros não é concessão nem favor: é parte de uma dívida histórica do Estado brasileiro com os povos afrodescendentes. As religiões de matriz africana foram fundamentais para a preservação da identidade, da memória e da resistência cultural negra diante da escravidão, do racismo e da exclusão social.

Negar direitos a esses espaços é perpetuar desigualdades históricas e reforçar a lógica de que determinadas expressões religiosas são menos legítimas do que outras. A efetivação da imunidade tributária deve ser compreendida como política de reparação institucional, em consonância com os princípios constitucionais da dignidade humana, da igualdade material e do combate ao racismo.


4. O papel estratégico dos municípios

Embora a imunidade tributária seja uma limitação constitucional ao poder de tributar, sua efetivação cotidiana passa, em grande medida, pelos municípios, especialmente no que se refere ao IPTU. Por isso, é no âmbito municipal que se concentram muitos dos entraves – e também as maiores possibilidades de transformação. Neste sentido, seguem propostas para facilitar o reconhecimento da imunidade tributária dos terreiros:


4.1. Normatização administrativa clara
Os municípios podem editar decretos, instruções normativas ou portarias que reconheçam expressamente os terreiros como templos de culto para fins tributários, evitando interpretações restritivas por parte de fiscais e secretarias de fazenda.


4.2. Procedimentos simplificados de reconhecimento
Criar processos administrativos simplificados, com exigências documentais compatíveis com a realidade dos terreiros, respeitando suas formas próprias de organização e ocupação do espaço.


4.3. Capacitação de servidores públicos
Promover formação continuada para fiscais, procuradores municipais e gestores sobre liberdade religiosa, racismo religioso e diversidade cultural, reduzindo decisões baseadas em preconceitos ou desconhecimento.


4.4. Reconhecimento autodeclaratório com presunção de boa-fé
Adotar mecanismos de autodeclaração do caráter religioso do espaço, com presunção de legitimidade, cabendo ao poder público apenas a fiscalização posterior em casos excepcionais.


4.5. Articulação intersetorial
Integrar secretarias de fazenda, cultura, direitos humanos e igualdade racial, reconhecendo os terreiros também como patrimônios culturais imateriais e espaços de proteção comunitária.


4.6. Conselhos e diálogo permanente
Instituir ou fortalecer conselhos municipais de promoção da igualdade racial e de liberdade religiosa, com participação efetiva de lideranças de matriz africana.


5. Conclusão

O combate ao racismo religioso no Brasil exige mais do que discursos genéricos sobre tolerância. Exige decisões administrativas concretas, políticas públicas afirmativas e o reconhecimento de que a neutralidade formal do Estado não pode servir de escudo para a reprodução de desigualdades históricas.

Garantir a imunidade tributária aos terreiros de religiões de matriz africana é cumprir a Constituição, promover justiça histórica e fortalecer a democracia. Enquanto esse direito continuar sendo negado ou dificultado, o Brasil seguirá em dívida com sua própria história e com milhões de cidadãos cuja fé, cultura e ancestralidade sustentaram – e ainda sustentam – a resistência contra o racismo estrutural.

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