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sexta-feira, 18 de abril de 2025

A falta de razoabilidade de muitos concursos públicos quanto aos candidatos com deficiência


 

"A lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão." (Art. 37, VIII, da CRFB/1988)

Desde o início deste mês, estou acompanhando o concurso para a Guarda Municipal Civil de Niterói, logo após a primeira convocação dos candidatos para a segunda etapa do certame, em 05/04, conforme divulgado no sítio virtual da banca, o Instituto Nacional de Seleções e Concursos - SELECON.

Um número bem representativo de candidatos se inscreveu para esse concurso cujo salário inicial para um guarda é consideravelmente superior ao de muitas cidades aqui no RJ. Algo bem melhor do que paga a Prefeitura daqui de Mangaratiba, por exemplo.

Entretanto, graças à demanda individual de um cliente que me procurou, pude ver o quanto este e outros concursos até hoje continuam sendo excludentes com relação aos candidatos com deficiência, apesar de suas regras preverem cotas para esse grupo de pessoas assim como para negros e indígenas.

No caso em comento, de acordo com o item "5" do Edital de Abertura n.º 001/2024, foram ofertadas 209 vagas no total geral, sendo 146 para a ampla concorrência, 21 para candidatos e candidatas com deficiência, e 42 para candidatas e candidatos negros. E a parte que trata da reserva de vagas para pessoas com deficiência encontra-se no item "6".

Cumprindo o item "13" do Edital de Abertura, muitos candidatos submeteram-se à primeira etapa de avaliações que é a "prova de conhecimentos", aplicada em 16/03/2025, tendo sido o Resultado Final da Nota da Prova Objetiva Retificado divulgado pelo SELECON no dia 04/04/2025. No entanto, inúmeros cotistas que alcançaram a nota mínima na prova objetiva não constavam na relação dos convocados para a segunda fase divulgada em  05/04, apesar de terem atendido às exigências dos subitens "13.9" e "13.10" das regras editalícias:

"13.9 Será considerado APROVADO na Prova de Conhecimentos o candidato que obtiver, no mínimo, 50 pontos do total dos 100 pontos previstos e, ainda, no mínimo, 50% dos pontos da disciplina de Conhecimentos Básicos de Direito (25 pontos), e 40% dos pontos de cada uma das demais disciplinas (12 pontos em Língua Portuguesa; 4 pontos em Conhecimentos de Informática e 4 pontos em Conhecimentos do Município de Niterói).
13.10 A nota final (NF) do candidato será a soma dos pontos obtidos em cada disciplina da Prova de Conhecimentos."

Importante esclarecer que esse certame de Niterói se divide nas seguintes fases, sendo certo que os aprovados na prova de conhecimentos têm o direito de prestar o exame antropométrico e a prova de capacidade física que foram a segunda etapa:

1ª Etapa - Prova de Conhecimentos, de caráter eliminatório e classificatório;
2ª Etapa – Exame Antropométrico e Prova de Capacidade Física, de caráter eliminatório;
3ª Etapa – Exame Psicotécnico, de caráter eliminatório;
4ª Etapa – Exame Médico, de caráter eliminatório;
5ª Etapa – Investigação Social e Documental, de caráter eliminatório.

Assim, como consequência da aprovação na prova objetiva, deveriam esses candidatos ser convocados para a segunda etapa que é o Exame Antropométrico e a Prova de Capacidade Física, segundo dispõe o item 14.1 do Edital:

"14.1 Serão convocados para a 2ª ETAPA (Exame Antropométrico e Prova de Capacidade Física), por meio de edital no endereço eletrônico https://selecon.org.br/, os candidatos APROVADOS na 1ª ETAPA (Prova de Conhecimentos), obedecida a ordem de Classificação Geral (com os candidatos à Ampla Concorrência e à Reserva de Vagas para Pessoa com Deficiência), correspondente a 5 (cinco) vezes o número total de vagas ofertadas, acrescidos dos candidatos aprovados que obtiverem nota idêntica a do candidato classificado na 1.045ª posição, estando os demais candidatos NÃO CLASSIFICADOS para a 2ª. ETAPA e, portanto, eliminados e excluídos automaticamente do Concurso Público."

Porém, de acordo com a Relação de Aprovados, por Ordem de Classificação, na Prova Objetiva de Conhecimentos, divulgada no dia 04/04/2025 na área específica do sítio eletrônico do SELECON, muitos candidatos com deficiência classificados no número previsto de 21 vagas foram, inicialmente, excluídos da Relação de Convocados para o Exame Antropométrico e para a Prova de Capacidade Física, constando estranhamente como eliminados, de modo que apenas quatro que concorriam nessa categoria especial iriam prosseguir.

Houve questionamentos a esse respeito assim como observei candidatos reclamando de questões relativas à prova objetiva a ponto de terem ajuizado ações na Justiça. Desse modo, o SELECON acabou retificando nas últimas horas do dia 07/04 a convocação para a segunda etapa, permitindo a participação desses candidatos que, indevidamente, constavam até então como eliminados, provavelmente devido a uma má interpretação das regras do próprio edital já alterado cinco vezes até o momento.

Entretanto, os problemas de muitos desses candidatos e candidatas continuaram na segunda etapa desse concurso! Principalmente por causa do prazo exíguo de 5 dias para o preparo físico, o qual é manifestamente irrazoável e desproporcional, especialmente para um candidato inscrito como PcD, de maneira que o SELECON não parece ter se atentado para os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, os quais devem reger o concurso público.

Nessa toada, a convocação tardia da ampla maioria desses candidatos e o curto prazo para o TAF colocaram as pessoas com deficiência em desvantagem em relação aos demais participantes que tiveram tempo hábil para se preparar.

Apesar de não ter havido uma ampla divulgação, eis que o certame em questão chegou a ser objeto até de uma demanda judicial coletiva distribuída sob o n.º 0811582-79.2025.8.19.0002, movida pelo 6º Núcleo de Tutela Coletiva da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. E, embora não tenha havido tempo hábil da liminar pretendida ter sido apreciada antes da realização do TAF, foram expostos argumentos bem pertinentes na peça inaugural do processo:

"As provas objetivas ocorreram no dia 16/03/25, contudo, as provas referentes à 2ª etapa (Exame Antropométrico e Prova de Capacidade Física) estão previstas para o dia 12 e 13 de abril de 2025. Com isso, o lapso entre a convocação retificada de candidatos com deficiência e a realização dos exames físicos tornou-se inferior a uma semana, período irrazoável considerando a exigência de preparação física e psicológica para a execução dos exames.
Além disso, o Edital não previu qualquer adaptação nas atividades físicas exigidas para a 2ª etapa, em evidente violação à isonomia material.
O edital do concurso em exame tampouco previu, por outro lado, reserva de vagas para candidatos indígenas.
A Defensoria Pública se reuniu presencialmente com a Procuradoria do Município réu no dia 11/04/25 às 13h30, requerendo a suspensão do concurso, para análise das questões fáticas e jurídicas ora trazidas.
Contudo, embora a solicitação de reunião tenha sido prontamente atendida, o Município entendeu pelo indeferimento do pleito de suspensão. Não resta, assim, à Defensoria Pública outro meio de garantir a observância de tais comandos legais, constitucionais e convencionais, do que a propositura da presente demanda judicial.
(...)
O tratamento que vem sendo dado aos candidatos com deficiência também afronta tais comandos constitucionais.
A começar pela ausência de previsão no edital de critérios diferenciados – adaptações razoáveis - para as pessoas com deficiência no que toca à aferição da aptidão física para o exercício do cargo, inviabilizando o acesso a estes.
O erro quanto à própria aplicação do edital evidencia o desrespeito que vem sendo imposto às pessoas com deficiência e a sua retificação não se deu em tempo hábil para assegurar o acesso destas ao certame em condições materialmente consentâneas com o postulado da isonomia.
Tal proceder importa em barreira ao acesso da pessoa com deficiência ao certame, violando também o preceituado no art. 54, da Lei 13.146/15, que previu o direito à acessibilidade, que abrange todas as formas de exercício de direitos de cidadania e participação social, e bem assim o disposto no art. 4º, deste estatuto, que expressamente dispõe:
“Art. 4º Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.
§ 1º Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas. (...)”
Observe-se que a conduta de obstar (criar embaraço ou obstáculo) o acesso ao cargo público à pessoa com deficiência recebeu do legislador a sanção máxima do nosso ordenamento jurídico - a sanção penal, no art. 8º, II, deste estatuto.
(...)
Pretende-se, na presente demanda, a suspensão do concurso público, evitando-se a realização das provas previstas para os dias 12 e 13/04/25, intentando-se a proposição ulterior, como demanda principal, de ação com pleito de declaração de nulidade do certame e retificação do edital, com reabertura do prazo de inscrição, pelos fundamentos fáticos e jurídicos acima apresentados.
A continuidade do certame trará dificuldades a efetivação de providência definitiva, posto que importará na ampliação da lide para a esfera jurídica de todos os concorrentes, e trará prejuízos materiais e psicológicos para todos os envolvidos."

No caso em questão, não podemos esquecer da falta de clareza e da contradição entre a eliminação e a convocação repentina dos candidatos cotistas, sendo fatos que, a meu ver, violam o direito à informação e à transparência do processo seletivo. E, especificamente, no caso dos candidatos inscritos como PcD, a legislação brasileira garante às pessoas com deficiência o direito à igualdade de oportunidades e à adaptação razoável nos processos seletivos, conforme muito bem exposto pela digníssima defensora pública, o que, nesse concurso da Guarda Municipal de Niterói, com todo acatamento e respeito, não veio a ser observado pela banca contratada.

É fato que as jurisprudências dos tribunais pátrios vêm considerando ilegal a convocação para exame de aptidão física com prazo inferior a 15 dias. Senão vejamos o entendimento da nossa egrégia Corte fluminense quanto ao julgamento do apelo de n.º 0119625-35.2014.8.19.0001, cuja ementa transcrevo:

"APELAÇÃO CÍVEL. CONCURSO PÚBLICO. TESTE DE APTIDÃO FÍSICA. CERTAME INICIADO EM 2003. EXAME FÍSICO MARCADO PARA 2014, APÓS DECISÃO EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REPROVAÇÃO. PEDIDO DE MARCAÇÃO DE NOVO EXAME, EM RAZÃO DO PRAZO EXÍGUO ENTRE A CONVOCAÇÃO E A PROVA. RAZOABILIDADE.
1- Hipótese que não se enquadra no tema n° 335 do STF, ocorrendo o fenômeno do distinguishing; 2- Cinge-se a questão sobre a anulação da reprovação do exame físico, ante a exiguidade do prazo entre a convocação e o exame; 3- Ainda que se reconheça a isonomia entre os candidatos convocados, já que todos realizaram o TAF nas mesmas datas, constata-se, igualmente, a falta de razoabilidade na forma como o referido exame foi anunciado aos candidatos, isto é, após mais de 10 anos da realização da prova objetiva e com menos de 15 dias de antecedência do teste físico; 4- Violação do princípio da razoabilidade. 5- Jurisprudência que entende ser razoável o prazo de 90 dias para o candidato se preparar. DESPROVIMENTO DO RECURSO." (TJERJ. Antiga 6ª Câmara Cível. Rel. Des. Teresa de Andrade. Julgado em 07/01/2020) - destacou-se
 
Além do mais, houve situações análogas em outros entes federativos em que candidatos também foram beneficiados por decisões judiciais, respectivamente em São Paulo e no Distrito Federal, conforme pode ser citado nas seguintes matérias divulgadas na imprensa:

"Ao analisar o pedido, o magistrado disse que a previsão no Edital do referido concurso de não adaptação do TAF às condições do candidato PCD afronta garantia legal estabelecida no Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/2015). Além disso, que o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu, na ADI 6476, que “a recusa de adaptação razoável é considerada discriminação por motivo de deficiência".
O juiz esclareceu que Lei Complementar Municipal nº 3.064/21, que dispõe sobre a estrutura jurídica e administrativa da Guarda Civil Metropolitana de Ribeirão Preto, elenca em seu art. 49 as condições a serem cumpridas pelo candidato que pretenda ocupar o cargo. Dentre as quais ser considerado apto em exames de capacidade física e mental.
"A lei, portanto, não exige que a capacidade física seja plena, o que impõe a interpretação dada pelo STF, no sentido de que o teste de aptidão física deve ser adaptado para o deficiente físico, sob pena de indevida discriminação”, completou o juiz."

"Conforme explicou no pedido o advogado goiano Agnaldo Bastos, do escritório Agnaldo Bastos Advocacia Especializada, o candidato foi prejudicado pelo uso de máscara durante o TAF, critério foi exigido pela banca examinadora a apenas cinco dias da realização da prova. Nesse sentido, observou que o candidato que não teve tempo suficiente para treinar e se preparar para o teste usando máscara.
O advogado ressaltou que, diante do pequeno espaço de tempo, a exigência do uso de máscara durante a aplicação do TAF violou os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. “Afinal, ao se definir um novo critério que ensejará dificuldades na execução dos exercícios ou dificuldades na respiração, a banca examinadora deveria ter adequado os índices a essas mudanças”, disse no pedido.
Salientou, ainda, que o uso obrigatório de máscara durante a execução do TAF configura alteração na dinâmica dos exercícios avaliados. E, por ter ocorrido em prazo inoportuno, trouxe prejuízo aos candidatos. Acrescentou que, mesmo sem ter se preparado para o TAF com o uso de máscara, o requerente teve excelente desempenho em quatro dos cinco testes aplicados no TAF.
Ao analisar o pedido, o magistrado esclareceu que, para a regular análise da pretensão deduzida na inicial é imprescindível a abertura do contraditório, o que impede a antecipação do exame do mérito nesta oportunidade. Contudo, considerou que a não participação do candidato na próxima fase do concurso esvaziaria a demanda, o que torna necessária providência cautelar a fim de assegurar o resultado útil do processo."

A meu ver, no caso específico do concurso da Guarda de Niterói, entendo que deveriam anular as eliminações dos candidatos e das candidatas com deficiência e convocá-los para a realização de um novo TAF, bem como ser o certame suspenso e novamente revisto, com a correção das inconsistências, além da garantia da transparência e lisura do concurso. E, se não for concedido de imediato um novo prazo para a repetição do exame que garanta tempo hábil para fins de um preparo físico adequado, poderiam, a princípio, permitir a participação dos candidatos com deficiência que foram eliminados no TAF na terceira etapa do certame que é o exame psicotécnico.

Apesar de Niterói possuir uma excelente administração municipal e estar a anos luz de várias outras cidades fluminenses em termos de inclusão social, há muito o que ser feito em relação às pessoas com deficiência, a fim de que o artigo 37, inciso VIII, da nossa Carta Magna não se torne uma letra morta. Pois, afinal, para vivermos num mundo menos injusto, torna-se necessário tratar desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade, ou, do contrário, viveremos numa igualdade meramente formal, sem nenhuma eficácia.

Ótima Sexta-Feira Santa a tod@s!

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