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segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

🌱 O direito à cidade começa no canteiro


Victor Graeff e as esculturas em ciprestes

Uma pequena cidade gaúcha que ganha fama por ter a “praça mais bonita” graças ao trabalho silencioso de um jardineiro octogenário. Uma escadaria carioca que se torna cartão-postal internacional pelas mãos de um artista chileno. Árvores plantadas por um saudoso morador que, décadas depois, definem a paisagem urbana inteira. O que esses casos têm em comum?

Mais do que histórias inspiradoras, eles revelam algo essencial: o direito à cidade não nasce apenas de grandes planos urbanísticos, mas também de iniciativas espontâneas, persistentes e profundamente humanas.


🌿 Iniciativas individuais que viram patrimônio coletivo

O caso retratado recentemente pela imprensa — do jardineiro de 89 anos que transformou uma praça inteira na cidade gaúcha de Victor Graeff em um conjunto de esculturas vivas — dialoga diretamente com outras experiências brasileiras e latino-americanas.

É impossível não lembrar da Escadaria Selarón, entre a Lapa e Santa Teresa, em que o chileno Jorge Selarón, morador do Rio de Janeiro, converteu um espaço degradado em símbolo cultural da cidade. Ou do famoso “Kobra”, personagem conhecido em diferentes bairros por intervenções urbanas não oficiais, que suscitam debates sobre arte, ocupação e pertencimento.

No Estado do Rio, há ainda o exemplo menos conhecido, mas não menos potente, de Tião Corrêa, responsável pelo plantio de ipês-amarelos e cerejeiras em Teresópolis — uma ação individual que moldou a identidade visual e afetiva da cidade serrana ao longo do tempo.

Esses casos mostram que o espaço público não é apenas administrado pelo Estado: ele também é produzido socialmente.


🏙️ A ponte com o direito à cidade

O conceito de direito à cidade, consagrado pelo sociólogo e filósofo francês Henri Lefebvre (1901 - 1991) e incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Estatuto da Cidade, vai muito além do acesso à moradia ou à infraestrutura. Ele envolve:


  • participação ativa dos cidadãos;
  • apropriação simbólica do espaço urbano;
  • função social da cidade e da propriedade;
  • construção coletiva do território.


Quando um morador cria e cuida de um canteiro, planta árvores ou embeleza uma praça, ele está exercendo o direito à cidade na prática, ainda que, muitas vezes, sem respaldo legal claro.

Daí surge o dilema: como o Poder Público pode reconhecer, proteger e incentivar essas iniciativas sem engessá-las ou transformá-las em mercadoria?


⚖️ A resposta institucional: um caso de Mangaratiba (RJ)

Em 2025, o município de Mangaratiba deu um passo relevante ao sancionar a Lei nº 1.589, de 11 de junho de 2025, oriunda de projeto encaminhado pelo atual Chefe do Executivo, Luiz Cláudio Ribeiro.

A lei institui o Programa de Adoção de Parques, Canteiros e Pórticos, permitindo que pessoas físicas e jurídicas participem formalmente da conservação e melhoria de espaços públicos.

Esse ponto é fundamental: o legislador não restringiu a participação a empresas, abrindo espaço para cidadãos comuns, moradores, aposentados, artistas, jardineiros e grupos comunitários.

Mais do que permitir a manutenção, a lei autoriza intervenções paisagísticas, mediante aprovação técnica, preservando o caráter de bem de uso comum do povo.


🌱 E a criação de canteiros por moradores?

Um debate central é se moradores podem criar canteiros em áreas públicas por iniciativa própria. A resposta, à luz da lei e do urbanismo democrático, é clara: sim, desde que regulamentado.

Um decreto regulamentador pode — e deve —:


  • autorizar expressamente a criação, recuperação e manutenção de canteiros;
  • prever procedimentos simplificados para pessoas físicas;
  • exigir apenas critérios mínimos ambientais e de segurança;
  • garantir que o espaço permaneça público, acessível e reversível;
  • reconhecer a iniciativa como ação cidadã, não como privatização.


Isso permite que ações hoje informais deixem de viver na fronteira da tolerância administrativa e passem a ser políticas públicas de baixo custo e alto impacto social.


🧓🌼 Trabalho ocupacional, saúde mental e pertencimento

Outro aspecto decisivo é o potencial dessas iniciativas para políticas sociais integradas. Grupos de convivência da terceira idade, usuários dos CAPS, escolas, igrejas e ONGs, por exemplo, podem encontrar no cuidado com o espaço urbano uma poderosa forma de:


  • trabalho ocupacional;
  • terapia comunitária;
  • educação ambiental;
  • fortalecimento de vínculos;
  • resgate da autoestima e do pertencimento.


Cuidar da cidade também é cuidar das pessoas!


🏷️ Reconhecer sem mercantilizar

Um dos riscos desses programas é transformar o espaço público em vitrine comercial. Por isso, boas práticas legislativas indicam:


  • placas de reconhecimento simbólico, sem publicidade;
  • certificações cidadãs;
  • cadastros públicos de iniciativas urbanas;
  • memória institucional dessas ações.


O reconhecimento deve ser cívico, não mercadológico.


🧭 Uma agenda possível para os municípios

Experiências como as de Vitória (Lei Rubem Braga), São Paulo, Rio de Janeiro e agora aqui em 2025 Mangaratiba mostram que há um caminho jurídico já aberto para reconhecer iniciativas espontâneas ligadas ao direito à cidade.

O desafio atual não é inventar do zero, mas aperfeiçoar, humanizar e democratizar esses instrumentos, garantindo que a cidade não seja apenas planejada de cima para baixo, mas também cultivada de dentro para fora.


🌻 Conclusão

Toda cidade bonita começa com um gesto simples: alguém que decide cuidar do que é de todos. Quando o poder público aprende a reconhecer esse gesto — sem sufocá-lo —, o direito à cidade deixa de ser um conceito abstrato e passa a florescer, literalmente, nos canteiros, praças e ruas.

Porque, no fim das contas, o direito à cidade também se planta.


📝 Minuta de um Projeto de Lei:

Apresento adiante um esboço completo de Projeto de Lei municipal, tecnicamente viável, politicamente defensável e explicitamente fundamentado no direito à cidade, inspirado nas referências debatidas (Mangaratiba, Rio, Vitória, São Paulo) — com foco central nas iniciativas espontâneas de cidadãos e coletivos.

O texto está estruturado para uso real por vereadores, prefeituras ou assessorias legislativas, mas também serve como referência acadêmica e militante.


📜 PROJETO DE LEI Nº ___ /2026


Ementa: Institui a Política Municipal de Valorização de Iniciativas Cidadãs no Espaço Público, como instrumento de promoção do direito à cidade, e dá outras providências. 


Art. 1º - Fica instituída a Política Municipal de Valorização de Iniciativas Cidadãs no Espaço Público, destinada a reconhecer, estimular e apoiar ações espontâneas de cidadãos e coletivos que contribuam para a melhoria, conservação, humanização e apropriação social dos espaços públicos urbanos.


Art. 2º - A Política fundamenta-se nos seguintes princípios:

I – o direito à cidade como direito coletivo;

II – a função social dos espaços públicos;

III – a participação cidadã direta na produção do espaço urbano;

IV – o pertencimento, o cuidado e a memória urbana;

V – a prevalência do interesse público sobre a apropriação privada;

VI – a simplicidade administrativa e a não burocratização.


Art. 3º - Para os fins desta Lei, consideram-se Iniciativas Cidadãs no Espaço Público as ações espontâneas, individuais ou coletivas, sem finalidade lucrativa, voltadas a:

I – criação, recuperação ou manutenção de canteiros, jardins e áreas verdes;

II – arborização urbana comunitária;

III – cuidado, limpeza leve e zeladoria cidadã;

IV – intervenções paisagísticas ou artísticas de interesse público;

V – valorização da memória, identidade e cultura locais;

VI – usos terapêuticos, educativos ou ocupacionais do espaço urbano.


Art. 4º - As iniciativas poderão ser propostas por:

I – pessoas físicas;

II – coletivos informais de moradores;

III – associações comunitárias;

IV – escolas, igrejas, ONGs e entidades sociais;

V – grupos de convivência da terceira idade;

VI – usuários e equipes vinculadas a serviços de saúde mental e assistência social.


Art. 5º ,- Poderão ser objeto das iniciativas cidadãs:

I – praças, parques e áreas verdes;

II – canteiros centrais ou laterais de vias públicas locais;

III – áreas públicas ociosas ou degradadas;

IV – entornos de equipamentos públicos;

V – outros logradouros públicos compatíveis com o uso proposto.

§1º É vedada qualquer intervenção que restrinja o livre acesso, a circulação ou a acessibilidade universal.

§2º Os espaços permanecem bens de uso comum do povo, vedada qualquer forma de privatização.


Art. 6º - O Município instituirá procedimento simplificado para reconhecimento das iniciativas, especialmente quando propostas por pessoas físicas ou coletivos informais.

§1º O procedimento exigirá, no mínimo:

I – requerimento padrão;

II – indicação do local;

III – descrição simples da ação;

IV – compromisso de respeito às normas ambientais e urbanísticas.

§2º É vedada a exigência de projeto técnico complexo, salvo em casos excepcionais devidamente justificados.


Art. 7º - O Município poderá apoiar as iniciativas por meio de:

I – orientação técnica básica;

II – fornecimento eventual de mudas ou insumos;

III – cessão temporária de ferramentas;

IV – apoio institucional e divulgação.


Art. 8º - As iniciativas reconhecidas poderão receber:

I – placa identificativa de caráter cívico, sem publicidade comercial;

II – certificado de iniciativa cidadã urbana;

III – registro em Cadastro Municipal de Iniciativas Cidadãs.


Art. 9º - As iniciativas poderão ser reconhecidas como ações complementares às políticas de:

I – saúde mental;

II – envelhecimento ativo;

III – educação ambiental;

IV – assistência social;

V – cultura e memória urbana.


Art. 10 - O reconhecimento das iniciativas:

I – não gera direito real ou posse;

II – tem caráter precário e revogável;

III – não enseja indenização;

IV – pode ser encerrado a qualquer tempo por interesse público.


Art. 11 - O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, podendo:

I – criar modalidades de iniciativas;

II – estabelecer critérios técnicos proporcionais;

III – instituir formulários e manuais simplificados;

IV – integrar secretarias envolvidas.


Art. 12 - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.


📌 EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS (síntese)

A presente proposição reconhece que o espaço urbano é produzido não apenas pela ação do Estado, mas também por iniciativas espontâneas, solidárias e comunitárias de cidadãos, que historicamente contribuem para o embelezamento, a conservação, a identidade cultural e a função social da cidade.

Ao instituir uma política pública voltada à valorização dessas iniciativas, o Município promove o direito à cidade, nos termos do Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001), fortalece a cidadania ativa e cria instrumentos de baixo custo e alto impacto social.

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